Bocejo da Morte
Gerson Machado de Avillez
“Sono, essas pequenas fatias de morte, como eu as odeio.”
Edgar Allan Poe
O lugar desolado por um perpétuo inverno de séculos remetia a um mausoléu de gelo. Lá estava sepultado o que teria sido o berço da humanidade, o planeta Terra. Aquele lugar devastado por cataclismos mais parecia com uma maldição que sobreviera à humanidade, por causa de sua arrogância e corrupção na luta do homem contra o homem pelo poder sobre sua própria espécie. Dentre os poucos que sobreviveram ao fatalismo dessa inutilidade, vagaram pelo espaço na busca por planetas que pudessem terraformar, tornar uma Nova Terra. Como os séculos se tornaram milênios para eles, as tenras memórias históricas se tornaram nebulosas e parcas como os mitos. Aquilo pedia uma viagem às origens, onde a aventura humana começara originalmente, uma missão tripulada à Terra com o objetivo de investigar os motivos de sua capitulação de outrora.
Os esparsos relatos iniciais seriam de que o ódio, inveja e ganância dos poderosos ultrapassaram todos os limites morais e legais, do consumismo desenfreado ao monopólio. As altas taxas de criminalidade e discriminação pareciam lançar a humanidade a um passado de barbarismo moral. Assim, os arqueólogos do amanhã eram humanos extraterrenos no encalço do que seria o pós-modernismo de hoje. Esses arqueólogos, servindo-se dos mais primorosos métodos científicos na busca da verdade no século XXX, na Terra encontram as ruínas de que houvera uma civilização no século XXI. Nas cinzas da decadência da humanidade encontraram esboços de uma primitiva tecnologia, a arcaica internet. Ao pesquisarem mais a fundo o que sobrou dessa internet, isso permitiu que eles reconstituíssem parte do que era o mundo na época para entender o que provocou seu declínio e queda, uma misteriosa pandemia do sono.
As memórias da tecnologia da informação ficaram em grande parte preservadas por séculos no gelo de uma era glacial, permitindo, pelo sofisticado aparato extraterreno, a decifração de uma pálida linguagem binária. Fotos, vídeos, músicas, livros e toda sorte de dados foram recapitulados como parte ulterior da saga da jornada humana, errante de tropeços e quedas como aquela. Todavia, os motivos daquela suposta pandemia onírica que levou ao sono perpétuo os humanos terráqueos permaneciam imprecisos. Sabiam eles da apatia que se abateu sobre a civilização desse tempo, o individualismo contra a individualidade alheia e o egoísmo contra o amor da empatia. Assim, gradualmente, a moda em voga era um escuso normativo de sociopatia, quando a moléstia do dito Transtorno de Personalidade Antissocial havia sido curada há dois séculos, mais precisamente em 2786 d.C., no tempo terrestre.
Assim, os arqueólogos da post-modernidade terrestre passaram meses do tempo padrão local pesquisando as causas e origens de tudo, buscando o epicentro da pandemia. Descobriram que tudo começou numa cidade na então chamada Cordilheira dos Andes, no Chile. O frio local da época era um preâmbulo das ainda mais baixas temperaturas do século XXX.
Foi a capitulação do que antes era o apogeu. No âmago do problema, os extraterrestres perceberam que a misteriosa epidemia, quando ainda endemia, surgiu no Brasil – aquele país que, apesar de grande território, era moralmente medíocre entre seus dominantes. O Sono se espalhou, à princípio como um rumor, em seguida como um clamor – no entanto, aqueles infectados sequer sabiam quais vias lhes eram tomadas. Os arqueólogos queriam respostas da era pós-histórica terrestre, mas sem lograr êxito perceberam na reconstituição histórica como mesmo o presidente da época fora acometido pelo mesmo clamor. O Sono era paralisante, estendia o estado REM do ato de dormir, levando a um aumento incomum no fluxo sanguíneo ao cérebro com uma aparente superatividade neural. Era como se o cérebro, naquele estado de torpor, houvesse trabalhado mais do que desperto, como uma máquina processando inúmeros dados até que o sono se tornasse coma e dele a morte sobreviesse. As vítimas ficaram inertes como num infinito estado de sono REM até seus corpos morrerem num vegetar perpétuo. Logo os arqueólogos perceberam que precisavam de mais dados além dos disponíveis nas ruínas da internet: um espécime humano conservado no gelo a fim de ser melhor analisado pela tecnologia que sondava o inefável.
Quando finalmente encontraram um espécime conservado, original do século XXI, perceberam o quanto a espécie humana melhorou após os séculos. Era um cérebro aprimorado artificialmente, assim como inúmeros outros aspectos físicos que lhe davam imunidade às principais e maiores doenças desse século, aumentando exponencialmente a longevidade – ainda que, para vencer o campo de Schumman apresentasse um desafio à integridade celular do corpo. Mas o fato é que o cérebro daquele que sucumbiu à Doença do Sono parecia envolvido num estado mental que assemelhava alterar o funcionamento do cérebro. Como se aquilo indicasse a presença de um parasita, ainda que fisicamente ausente. Outros corpos coletados indicavam disposição similar àqueles cérebros que drenava gradualmente a energia vital até a exaustão da qual, o Sono, aparentemente induzido, levava à extrapolação da mente como se fora de si mesma. A análise feita levou a uma óbvia conclusão – a de que uma força exterior ao corpo influía sobre a mente humana catalisando aquele estado deliberadamente. Mas de onde seria?
Graças à tecnologia detectaram uma assinatura visível apenas em nível quântico, o que denotava algo nos limites dimensionais e físicos do universo. O rastro persistente que havia afetado os neurônios naquele nível exacerbava as dimensões conhecidas, implicando na única origem possível do mesmo – uma dimensão além das conhecidas de nosso universo! Graça ao equipamento extraterrestre, era possível decifrar e salvar memórias, mesmo do estado onírico em que aquele corpo sucumbira antes da falência generalizada. Com início no cérebro letárgico sensorialmente ao exterior, ainda que demonstrasse estar acometido pelo medo por ter hormônios de adrenalina liberados através do corpo.
Foi assim que chegaram à conclusão de que algo de outra dimensão utilizava-se daqueles cérebros para processar algum tipo de informação. Dada a expectativa das memórias, indicavam informações como as que compunham o universo primordial! Era como se uma força maligna utilizasse de modo usurpado dos cérebros humanos para criar e fortalecer a própria dimensão de onde emergiam! Agiam como processadores que compunham as vertentes de informações vibracionais que, pelas frequências, definiam a diferença entre matéria e energia. Tal situação parecia dar sentido ao fato de que a mente humana trabalhava em mais dimensões que as oriundas de nosso universo. Assim, sustentava num aparente paradoxo a existência de tais entidades que, justamente, se alimentavam da centelha criadora do homem para se estabelecerem.
Parasitas de mundos interiores à energia vital humana que sustentava aquela dimensão inefável criavam uma realidade na qual as leis eram diferentes de tudo conhecido. Sua linearidade incompreensível à causalidade entrópica de nosso universo, ao gerar uma seta do tempo em direções improváveis, levava-os a se expandirem mediante variáveis não consumadas do malogrado destino de suas vítimas.
Como uma seta do tempo que não ia para trás nem para frente no tempo, mas para os lados! Assim era o tempo naquele improvável universo. Ao ver isto, o humano extraterrestre percebeu se tratar não meramente de alienígenas – mas dando razão ao termo de demônios que usavam de nossas mentes para tornar a existência sua realidade inferior. Tudo isso tendo como base a aflição da mente que atinava a causalidade de nosso mundo.
— O que faremos com isto? Temos dados suficientes para reconstituir trechos desse universo para melhor compreender sua existência — perguntou um dos humanos do espaço exterior, numa língua desconhecida que havia evoluído do português.
— Proceda com a reconstituição — respondeu seu superior, com a finalidade de melhor entenderem aquela dimensão.
Como o processamento exponencial daquela máquina era sem precedentes, a reconstituição com os dados decifrados logo compôs trechos aparentemente randômicos daquele universo que ia para os lados. E o que se viu era vil, um universo alimentado pela dor, medo e aflição de cérebros cativos, como num castigo perpétuo. Aquela dimensão era o Inferno. Aqueles homens e mulheres estavam, literalmente, no Perpétuo Sono, nos braços de Morpheu.
Ao fitar aquilo, aquele humano de outro mundo subitamente bocejou, sentindo sono. Fazia tempos que não se sentia tão cansado…
NOTA: Esta história pertence a um “multiverso compartilhado”, que também se estende aos contos O Jogo da Dominação e Os Elos do Destino, a serem publicados em breve.