Contos: Jogo da Dominação (por Gerson Machado de Avillez)
“A ilusão é uma imperfeição que corrompe a mente.”
Série Marco Polo
Álvaro Whatchman era um mago da tecnologia, sempre tratava de criar novas ferramentas digitais, equipamentos e, posteriormente, mesmo jogos em sua empresa Interactive Future. Porém, a enigmática personalidade nutria a centelha da desconfiança em teóricos da conspiração que frequentemente apontavam ideias de uma trama, segundo a qual, ele visava dominar não apenas o mercado, mas a mente do ser humano por sofisticada engenharia social. Primeiro, ele propôs soluções enfáticas sobre a questão do bug do milênio, quando os dois únicos dígitos de datas de 99 voltariam ao passado, ao ’00’ de 1900 com a virada para o ano 2000. Sua empresa cresceu oferecendo serviços de atualização de sistemas e bios de computadores, mas no âmago silencioso de sua empresa havia quem sugerisse que aquela era a oportunidade de pegar dados pessoais de todos os usuários que haviam comprado seus serviços. Todavia, por um enigma, os rumores não se confirmaram e agora, três décadas depois, Álvaro deixou seu último legado após ter sumido da vida pública durante uma década.
Coincidindo com o lançamento de um sofisticado jogo de realidade aumentada, curiosamente, o homem ressurge morto em circunstâncias suspeitas. Seu corpo, disposto num aparente homicídio, não deixava margem coerente para tais afirmações, uma vez que se assassinato poderia ter sido realizado apenas por alguém que não saíra do recinto. À sua volta, manuscritos se perdiam em problemas para o computador quântico que tinha o processamento principal do jogo intitulado Hipereality. O processamento estava parado num trecho no qual um personagem digital estaria atuando no recinto visível por tecnologia de projeção de realidade, mas aquele ser de Inteligência Real não poderia ser o suspeito do crime por uma razão óbvia – não possuía um corpo físico para interagir diretamente no mundo real, sendo apenas projetado de modo sobreposto a ele.
Técnicos e policiais trabalharam juntos à procura de respostas. Toshiro Nakamura, perito em crimes virtuais, fora solicitado para o caso. Ele era um cracker na juventude, mas se regenerou tornando-se um especialista em criptografia quântica, assim como um crítico da tecnologia. Tão logo Nakamura notou discrepâncias incomuns no código de processamento do jogo de realidade aumentada, relacionou com algum tipo de programa atuando dentro do sistema central do jogo. O qual parecia, por uma impossibilidade, usar todo processamento potencial do cérebro quântico que era a formidável máquina QuanticBreak.
Todavia, apesar de intrigado, Nakamura focou em dados mais plausíveis e palpáveis, ao menos diretamente. Adentrou o jogo através de acessórios especiais como óculos de hiper-realidade que projetavam imagens sobrepostas, ao contrário dos implantes cibernéticos na íris de usuários, algo costumeiro em 2035. De imediato notou a suposta projeção sensorial de um personagem que, por hackeamento, havia adentrado os vislumbres de Whatchman no jogo. Aquela era a pista!
Seguindo rastros digitais do jogador hacker enquanto a autopsia identificava uma sobrecarga sensorial na vítima, o laudo levou, ao sair, que todos do Departamento de Crimes de Realidade Aumentada ficassem em expectativa, ao perceber que, de alguma forma, as imagens projetadas afetaram diretamente o velho homem da tecnologia como se fosse algo tangível à realidade física, ao projetar efeitos psicossomáticos fatais. Partindo dessa informação, Nakamura solicitou a quebra do código quântico do jogo, aceito de modo resignado pelos programadores da empresa. Sem dar detalhes, o mapa parecia indicar lugares não descritos nos mapas físicos, para surpresa de Nakamura, aumentando o mistério em torno do caso.
Os problemas que eram normalmente resolvidos por computadores clássicos, denominados como P e NP, eram facilmente resolvidos em máquinas de processamento quântico. Para se testar o potencial de uma nova máquina quântica como o computador de Álvaro Whatchman, fora preciso criar uma nova categoria de problemas próprios que passaram a ser intitulados de BQP – o que parecia já estar em atividade no jogo de realidade aumentada, mas nem Nakamura, nem os técnicos da Delegacia sabiam dizer qual seria o problema em si.
Aparentemente, havia flutuações no código do programa, o que sugeria uma provável infecção por vírus. Mas um malware capaz de extrapolar o próprio processamento quântico de forma alinhada era inusitado, pois apenas poderia se tratar de um vírus criado especialmente para uma máquina como aquela, um vírus para processamento quântico. Quando conseguiram isolar o agente que gerava as flutuações observou-se um complexo softaware dentro do software do jogo, algo que parecia combinar com a criptografia do programa, mas em constante mutação. Por se tratar da computação que lidava com criptografia quântica, isso tornava virtualmente impossível de ser quebrado sem as adequadas chaves que tornavam possível acessar as linhas de programação do programa suspeito.
Vendo-se num beco sem saída, Nakamura partiu para pistas circundantes, o que poderia indicar o responsável pela infecção da máquina. Foi nesse momento que parte do sinal quebrado indicou a visualização de um usuário na cena do crime, intitulado ShadowTruth. O sujeito parecia ter invadido o sistema de modo a utilizar-se de câmeras do recinto de Whatchman para acompanhar o jogo de realidade aumentada à distância. Ao extrapolar os dados, finalmente chegaram a um endereço que, misteriosamente, bateu com o de um ex-funcionário no banco de dados.
Nakamura e sua equipe se dirigiram ao lugar que parecia sem sinal de vida há dois dias, ao menos segundo relatos de testemunhas oculares, vizinhos e amigos. De posse de um mandato de busca e apreensão, Nakamura invadiu o recinto enquanto gatos pareciam esgueirar-se pelas sombras de um ambiente à meia luz, com uma máquina fornecendo água e alimento para os animais. Não havia nenhum ex-funcionário presente, porém, ao dirigir-se à sua mesa, um computador ligado e envolto em papéis com anotações chamou a atenção.
Com sua lanterna, Nakamura iluminou os papéis e viu uma anotação no que parecia ser o Q-virus, malware criado ainda no tempo em que era funcionário, testando os limites de criptografia do programa de realidade aumentada.
Naquele instante, entretanto, outra anotação lhe despertou interesse. Intitulado “Sombras Sobre a Nova Caverna” parecia aludir ao clássico conto de Platão:
“Esse programa apenas lança sombras da verdade sob usuários entorpecidos pelos desafios do entretenimento. Mas há maiores charadas que para poucos mostram a verdade em lugares ocultos em meio às cortinas de fumaça e desinformação. Whatchman não é quem diz ser e a minha busca pela verdade rendeu-me a demissão.”
Ao lado do bilhete havia um mapa indicando lugares aparentemente no meio do nada. Um no Arizona, outro no Alasca (ali, supostamente, o dono da empresa possuiria uma residência) e também na Sibéria. Aquilo tirava totalmente da concepção que o jogo era limitado a pontos específicos do planeta como Europa e parte dos Estados Unidos, mas o colocava numa abrangência global acessível apenas a mentes preparadas e com capital suficiente. Aquele homem que vivera os últimos meses em reclusão parecia militar uma causa contra o jogo, apesar dele mesmo ser usuário, suspostamente para decifrar “charadas no escuro de uma caverna moderna”, como uma caça ao tesouro invertida ao valor monetário.
Jeremy Noan, o ex-funcionário, aparentemente respondia acusações sérias contra sua reputação, que iam de pedofilia a tráfico de drogas. Ainda que seu perfil não coincidisse com tais acusações, sugerindo que ele fora vítima de alguma armação para destruir sua credibilidade. Era um homem pacato, que não usava armas e cujos contatos sociais eram minimizados pela reclusão. Todavia, ainda recaia a suspeita sobre ele de envolvimento na morte de seu ex-patrão que, pelas alegações, demonstrava insatisfação.
— Esse homem não parece ser um traficante perigoso — resmungou Nakamura.
— Nem pedófilo ou louco, tudo aqui parece muito lúcido e coerente — falou seu parceiro, Norbet, empunhando uma lanterna cujo feixe, ao cortar o escuro da sala, lançava sombras tenebrosas de um boneco sobre sua escrivaninha ante a parede.
Os dois observaram ao redor enquanto os gatos pareciam segui-los de soslaio e o resto da equipe enviada investigava outros cômodos.
— Os vizinhos disseram que não o veem há bastante tempo, mas o senhor da casa em frente confirmou que o viu saindo com bagagens há dois dias — afirmou outro dos agentes de Nakamura. — Aparentemente, ao puxar os dados, ele comprou passagens para…
— A Sibéria, Rússia — respondeu Nakamura sem surpresa.
— Como o senhor, sabe? — espantou-se Norbet.
— O ambiente revelou. As anotações levam até as pistas do jogo.
— O que raios um homem desses vai fazer na Sibéria? — indagou seu parceiro fitando as anotações.
— Talvez procurasse o mesmo que a gente: respostas.
— Como saber qual resposta procurar se não conhecemos a pergunta?
— Apenas estamos seguindo a trilha de migalhas, Nobert — retrucou Nakamura. — Indagar a própria pergunta não a responde.
Norbet parou diante de uma estante abarrotada de livros e a fitou sob as sombras provocadas pelo feixe de luz da lanterna. Sabia que as sombras eram capazes de iludir. Talvez estivessem sendo enganados por cortinas de fumaça… Como ter certeza?
Nakamura analisou os e-mails no computador do suspeito e viu correspondências digitais trocadas com um outro ex-funcionário, Denis Newman, demitido por vazar segredos industriais da empresa meses antes do lançamento do jogo. Neles haviam dados e discussões do jogo ainda em fase experimental, assim como informações complementares sobre o que parecia ser um vírus criado para testar o potencial da máquina. As desconfianças dos dois se tornaram desavenças até que o demitido fora preso por passar dados confidenciais do projeto, assim como inserir o vírus no sistema. As alegações foram prontamente negadas por ele.
Ao cruzar os dados ante qualquer viagem, Nakamura e Norbet acharam oportuno visitá-lo num presídio privado projetado pelo próprio Álvaro Whatchman.
O lugar era extremamente sofisticado e com baixo custo com funcionários, tendo apenas uma equipe diuturna de técnicos e dez agentes penitenciários ativados apenas em caso de rebelião, o que nunca ocorreu. O lugar, que era um avanço no conceito de pan-óptico*, era arejado e totalmente automatizado, monitorado de forma onipresente por uma inteligência artificial central que acionava e controlava robôs humanoides, aparentemente autômatos, mas que não possuíam olhos ou ouvidos por motivos óbvios: as câmaras estavam por toda parte. O comportamento de todos os presos do governo não era apenas monitorado, mas analisado por um programa comportamental no qual o algoritmo tinha mutável complexidade adaptativa. No banco de dados, constava o perfil psicológico completo de todos os detentos, assim como todas e quaisquer informações adicionais que pudessem catalogar com o objetivo de facilitar e prever tendências e inclinações dos prisioneiros.
*Pan-óptico é um termo utilizado para designar uma penitenciária ideal, concebida pelo filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham em 1785, que permite a um único vigilante observar todos os prisioneiros, sem que estes possam saber se estão ou não sendo observados.
Ao chegar, Nakamura ficou impressionando com aquele projeto piloto, vendo durante toda a condução e o encontro com Newman, apenas um humano que os recebeu e os orientou para uma sala especial. Algemado, Denis foi conduzido por um daqueles robôs sem rosto, mas tendo uma insígnia prisional na testa. Parecia desiludido e deprimido ao cumprimentá-los.
— Senhor Denis Newman? Podemos lhes fazer algumas perguntas?
— Sim, sempre é bom ver rostos novos. Essas máquinas transmitem uma humanidade tão expressiva quanto uma tábua — comentou ele fitando o robô que agora dava passos atrás enquanto em sua fronte uma imagem similar a emoticons determinava os “estados de espírito” da máquina, como se ela os possuísse.
— Aceita um cigarro? — ofereceu Norbet, sabendo o normativo universal de qualquer prisão, que era usar maços de cigarro como moeda.
Denis pegou imediatamente o cigarro, assentindo com o rosto. Nakamura compreendeu a fala dele como um desabafo irônico ante a situação, uma vez que vivia a maior parte do tempo numa cela separada como um criminoso de alta periculosidade, o que era contraditório a seu perfil demonstrado nos e-mails.
— Por qual motivo você está numa cela separada, uma vez que sua ficha criminal acusa apenas de espionagem industrial e invasão virtual?
— Vingança, não justiça! Ou não sabe que isso aqui foi projetado e construído por Álvaro? Seus tentáculos de influência fraudaram até mesmo meu perfil psicológico, afirmando que sou um psicopata. Pois lhe digo, ele é que é um psicopata, não eu! — completou o homem, dando um trago no cigarro — Você não faz ideia do que está por de trás disso, desse jogo, não é tão diferente dessa prisão!
— Álvaro morreu, não sabia? Ele foi encontrado morto em seu escritório há quatro dias — comentou Nakamura.
— Vou te dizer, ele é tão arrogante que nem isso admitiria. Álvaro tinha planos mais ambiciosos que a morte.
— Poderia explicar? — indagou Norbet.
— Você sabe que toda uma nova categoria de problemas fora criada essencialmente para analisar os limites de processamento da emergente tecnologia de computação quântica. O que Whatchman queria era usar, literalmente, sua mente como um foco de processamento que simulava uma rede neural.
— E o vírus? O que você tem a ver com ele? — perguntou Nakamura, fitando-o diretamente nos olhos.
— Ele sabia que iria morrer pois tinha câncer, mas queria continuar vivendo nas máquinas, suas com suas memórias e tudo mais. O vírus foi apenas uma forma de tentar impedir a consciência digital dele de se propagar em seu plano.
— A tecnologia de transferência de consciência ainda é altamente especulativa. Você sugere que ele conseguiu isso com o processamento quântico? Não nos engane! — retrucou Nakamura de modo duro.
— Antes fosse apenas isso, mas a mente dele está em tudo como uma forma de controlar e estender seu poder, do jogo a essa prisão. Raios, aqueles crápulas dele armaram isso para mim! Quando descobri, até meus gatos mataram! Onde estão os softwares de Whatchman ele está junto, junto a um sofisticado algoritmo de Behavior, que era desenvolvido em segredo. Era intitulado Behaviorismo Preditivo! Há planos mesmo de controle do entretenimento a guerras, à medida que o programa analisava o comportamento humano coletivo e individual! Como o próprio problema de computação quântica, chegava a um código que era a chave para o livre-arbítrio humano. Meu amigo estava tentando ser o primeiro a vencer o jogo para descobrir o lugar onde estava a verdade – e se foi até lá, provavelmente era para descobrir a real intensão do jogo!
“O objetivo do programa global era decifrar o livre-arbítrio humano para a todos controlar!” Denis Newman referia-se uma série de códigos da doutrina de um “neo-comportamentalismo”, só que agregado a várias outras tecnologias que influenciavam o comportamento humano direta ou indiretamente, desde a criação de problemas e dificuldades em graus variados que ganhavam maior poder à medida que o programa era vendido e ganhava maior número de usuários. Newman tentou publicar a verdade num livro pouco antes de ser preso, mas foi impedido. No livro ele alegava que eram utilizados até mesmo escravos intelectuais para seu projeto escuso na base no Alasca.
Para completar a entrevista, Nakamura se indagou sobre o motivo de seu amigo ter ido supostamente à Sibéria, e o que ficou sabendo deixou mais perguntas no ar do que respostas. Denis afirmou que ele trabalhava sozinho, pois era mais fácil prever o comportamento coletivo do que individual. Assim, seguia pistas cognitivas de Álvaro como indícios do que tinha planejado. O que levava a lugares cuja existência não era determinada em mapas, pois sendo bilionário, Whatchman tinha sucursais por todo o planeta, do Alasca à Sibéria, em seu plano de, literalmente, mudar o destino da humanidade.
Ao retirarem-se do sofisticado complexo penitenciário, Nakamura permaneceu introspectivo em sua mente permeada por dúvidas e anseios. Ficou sobretudo temerário sobre onde poderiam chegar caso as alegações de Denis Newman fossem verdadeiras, desvelando uma trama ardilosa e insidiosa para a dominação da raça humana. Passou por ruas onde se viam caçadores da realidade aumentada perseguindo criaturas invisíveis aos olhos naturais do ser humano. Como uma legião de loucos dançando uma música inaudível, vagavam pelas ruas competindo e interagindo com o vento. Nakamura observou aquilo com perplexidade. Percebia que todos momentos encenados de realidade sobreposta em sua ampliação sensorial por vias tecnológicas, tornavam o ser humano entregue às intempéries de uma inteligência artificial que perpetrava apenas o poder de seu criador por uma mente digital virtualmente onipresente. O que teria ele mudado supostamente no curso natural do destino?
Ao chegar no aeroporto, seu passe de autoridade policial lhe dava aval numa cidadania global sem visto de qualquer embaixada, e fora com seu parceiro Nobert pagar com seu chip implantado a compra das passagens em Ethereum. Duas horas após decolar, o voo levou Nakamura a fitar o vazio pela janela da sofisticada aeronave, enquanto observava naves para o espaço decolarem carregando pessoas em destinos turísticos para além das fronteiras terrestres. Refletiu como se tornariam inúteis todos os avanços científicos caso nos tornássemos escravos da tecnologia. Nakamura adormeceu ao som de músicas da década de 1980, como um epílogo de uma humanidade outrora livre, apesar de todos os percalços e problemas.
Duas horas após a aeronave pousar, mais uma viagem se fez necessária até o ponto designado nas pistas deixadas pelo homem desaparecido. O silêncio os acompanhava, ao lado da expectativa crescente à medida em que se aproximavam do destino final. Vislumbraram um lugar não menos silencioso, permeado por um cortante vento frio. Desolado e vazio, parecia ser anunciado pela morte funesta. Caminharam em meio a restos de árvores, madeiras e pedras até uma enorme pedra, sob a qual era revelada uma entrada, quase como uma caverna. Talvez fosse o que predizia o suspeito ao relacionar sua busca à caverna de Platão, onde possivelmente estariam suas respostas.
Nakamura e Norbet sacaram suas armas de projéteis adaptáveis e olharam-se em silêncio ao confirmar a localização no GPS. Estariam eles igualmente sendo manipulados como os jogadores do infame game?
Ao adentrarem, o interior destoava do exterior. Um lugar arejado e iluminado, com a brancura semelhante à da prisão tecnológica. Caminharam lentamente sem quaisquer obstáculos, mesmo sabendo que estavam sendo monitorados pela fria inteligência artificial. Mas por qual motivo não reagia? Repentinamente, algo irrompeu o silêncio sepulcral e proferiu, numa voz vagamente humana a frase: Welcome to the Hidden Place.
Aparentemente, era como um bônus, um prêmio aos jogadores, pessoas que, exatamente como eles, estavam sendo guiadas pelo extenso corredor, no fim do qual encontraram um corpo caído no chão. Aproximaram-se com temor do corpo. Era o suspeito Dennis Newman. Tudo indicava que ele havia se matado com um tiro na cabeça diante de uma tela em que também havia tomado tiros. Ainda piscando, a tela exibia a mensagem: Congratulations, winner!
Fosse o que fosse, aquele era o final do jogo, ainda que a mensagem parecesse exprimir um censo de ironia tenebrosa ao jogador que havia vencido – um de seus programadores, que parecia conhecer apenas parte da verdade para, no final, por algum motivo, literalmente liquefazer seu cérebro. Nakamura inclinou-se sobre o corpo sem compreender os motivos que o levaram ao suicídio. Foi quando as luzes piscaram e novamente, anunciando os dois visitantes como os novos vencedores. Norbet e Nakamura apenas se entre olharam, perplexos, quando surgiu uma projeção holográfica que projetava o que parecia uma versão digital de Álvaro. O homem sorriu para eles, fitando-os diretamente, como se seus olhos fossem tão reais quanto suas palavras ditas em seguida.
— Bem-vindos, vocês foram escolhidos os novos vencedores da maratona global.
— O que ganhamos com isso?
— Uma nova vida! — respondeu ele, dando de ombros. — Uma nova consciência.
Nakamura permaneceu em silêncio, ainda sem compreender. A projeção de Álvaro prosseguiu:
— Ponha suas mãos no identificador biométrico, por favor. Para liberar as informações.
Hesitante, Nakamura trocou um olhar com o parceiro, em dúvida sobre como proceder, mas decidiu continuar o jogo.
— Por qual motivo o vencedor original se matou?
— Não suportou a verdade — respondeu Álvaro.
— Como assim? — indagou Norbet, enquanto Nakamura guardava a arma para mexer no equipamento.
— Algumas pessoas não aceitam o destino que os aguardava, o destino que eu criei. Isso o levou à morte, na tentativa de me matar. Mas o destino do grande bloco de gelo já fora quebrado e aquele que deveria me servir não me fará mal. Queria mudar o destino desse mundo, mas sozinho não era capaz, precisava da ajuda de todos, todos os usuários do jogo, algo tão difícil como mudar o curso do leito de um rio. Agora, o vencedor será eleito…
— Que destino? — cortou Nakamura, ainda perplexo, ao ter sua biometria gravada na máquina. — Você não me respondeu!
Repentinamente, um raio verde lançado sobre a cabeça dos dois fizera um escaneamento de suas mentes, enquanto numa outra tela aparecia o resultado. O rosto de Nakamura surgiu na tela, acima de uma mensagem pulsante informando: “Mente compatível”. O holograma sorriu e então um zumbido surdo fez o investigador se contorcer até cair de joelhos no chão, como se uma dor de cabeça lancinante o abatesse. Norbet o escorou, e sem saber como agir, apontou sua arma para a tela, gritando nervosamente para que o programa cessasse a agressão a seu chefe.
Sem obter resposta, Norbet disparou contra a máquina, inutilmente. Era tarde, uma novamensagem surgiu na tela informando estar transferindo a mente de Álvaro digitalizada para o vencedor. Que a inteligência era capaz de comportar a nova consciência por ele transmitida. Norbet deu mais tiros a esmo enquanto vociferava, mas não sabia como parar aquilo. Desesperado, Nakamura olhou o suspeito morto e finalmente compreendeu porque ele se matou: o vencedor era o eleito para carregar a mente de Álvaro a um alvorecer tenebroso, onde seus planos seriam finalizados em um novo corpo. Num último esforço, Nakamura pegou a arma como se lutasse contra si mesmo, mas Norbet o segurou numa luta corporal até que Nakamura parasse de reagir. Então, tudo silenciou.
— O que você fez com ele? Liberte-o! — gritou seu amigo, empunhando a arma descarregada.
O homem se curvou no sentido oposto ao de Nakamura desacordado, apenas por um instante. Quando voltou sua atenção a ele, se deparou com seu chefe de pé, empunhando sua arma.
— Nakamura? Você está bem? — perguntou seu parceiro e amigo, mas sabendo que havia algo profundamente errado ao notar aquele sorriso fúnebre em seu rosto. Não era mais Nakamura.
— Infelizmente, Nakamura não se encontra mais aqui. Obrigado por impedir sua morte, precisava desse hospedeiro para terminar meu grande plano. A prisão que criei para todos era para me livrar da prisão que meu próprio corpo se tornou, uma vez que a ética convencional não permitiria encontrar uma pessoa para ser meu avatar.
Nakamura era agora Álvaro Whatchman. Sem hesitar, executou Norbet, que tombou sem vida. O novo Álvaro voltou-se na direção da tela, onde tomava forma um teclado holográfico. Digitou uma senha em pleno ar e brilhou na tela uma nova mensagem: “Projeto 666 concluído”. Álvaro sorriu desdenhoso dos homens mortos no chão, pegou os documentos de Nakamura, agora seus, e retirou-se para começar uma segunda vida, sem a reputação suspeita de seu antigo corpo. Fechou a porta do lugar e partiu para onovo mundo que criara, não sem antes os ataques à reputação de Dennis Newman terem sido invertidas em súbito louvor.
NOTA: Esta história pertence a um “multiverso compartilhado”, que também se estende aos contos O Bocejo da Morte e Os Elos do Destino.
Outras informações no link: www.gersonavillez.jimdo.com
2 pensou em “Contos: Jogo da Dominação (por Gerson Machado de Avillez)”