Passaporte para Magônia
por B. B. Jenitez
Nicola Tesla morreu em sete de janeiro de 1943 mas ainda hoje somos surpreendidos por alguns de seus escritos, especialmente o que se convencionou chamar de seus “cadernos perdidos”, material revelado por biógrafos e historiadores a partir dos anos 2000. Aqui comentarei apenas seu caderno mais polêmico e curioso, apelidado por vezes de Passaporte para Magônia em homenagem ao livro de Jacques Vallée. Tal caderno é visto como apócrifo por alguns de seus biógrafos, na tentativa de preservar a memória de Tesla. Outros o consideram fruto de uma mente delusional, senil e mesmo psicótica (sua última entrada é de quinze de dezembro de 1942, ou seja, menos de um mês antes de sua morte).
O tema central do caderno são experimentos e teorias de Tesla sobre os assim chamados raios globulares ou relâmpagos esféricos (ball lightning). Na verdade, sabemos que Tesla tinha interesse por tal fenômeno desde meados de 1890, como atestam as Colorado Spring Notes*. Nelas, Tesla faz hipóteses sobre a formação, duração, movimento e explosão dos relâmpagos esféricos.
Nas ideias iniciais de Testa, expostas nas Colorado Spring Notes, um relâmpago esférico é uma massa de gás rarefeito muito aquecida pela passagem de um relâmpago e que se expande até se tornar visível e luminosa. Sua duração se deve a que o gás tem dificuldade em ceder energia ao meio ambiente, tanto por contato térmico quanto por convecção e mesmo radiação, durando assim vários segundos. Seus movimentos seriam lentos e mesmo erráticos, sendo carregado por correntes de ar. Finalmente, sua explosão final, relatada apenas em uma parte das observações, seria devida à enorme eletricidade estática liberada pelo relâmpago esférico quando em colisão com um meio material, seja uma mesa ou um corpo humano.
Essas idéias iniciais seriam modificadas e reformuladas por Tesla ao longo dos próximos quarenta anos. Não sobraram muitos registros dessa atividade, aparentemente porque Tesla a considerava mais como um hobby do que pesquisa científica séria. Não publicou nada sobre o assunto (o que é um dos argumentos dos que defendem de que Passaporte para Magônia não é canônico). O caderno, porém, está escrito com a letra de Tesla e é compatível com a ideia de que, após aposentado, ele se dedicou integralmente a este seu hobby científico.
O caderno não é um diário, mas um conjunto de relatos feitos de memória e teses que se sucedem no tempo, conforme o pensamento de Tesla se desenvolvia sobre o assunto. Apenas no final se encontram notas diárias. A primeira entrada é sobre uma observação feita em setembro de 1941 pelo navio mercante S. S. Pułaski que transportava tropas britânicas no Oceano Índico, divulgada nos jornais da época. Dois marinheiros reportaram um “globo estranho brilhando com luz esverdeada, com cerca de metade do tamanho da Lua cheia”. Eles alertaram o oficial britânico, que observou o fenômeno por mais de uma hora. Tesla anota que, conhecendo-se apenas o ângulo sólido mas sem se conhecer a distância do objeto, não é possível calcular o tamanho real do mesmo, de modo que poderia ser compatível com um relâmpago esférico. Observa também que o tempo de observação é muito grande e incompatível com suas teorias. Uma anotação na margem do caderno apenas diz “estudar melhor mecanismos de estabilidade dos ball [lightning]“.
Parece que foi este caso com duração anômala que despertou novamente a atenção de Tesla para os relâmpagos esféricos. Nas próximas anotações, do início de 1942, Tesla freneticamente esboça várias ideias sobre como o fenômeno poderia adquirir estabilidade, nenhuma delas muito satisfatória. E então lhe vem uma ideia não usual, dado que ele tinha ojeriza em relação à Teoria de Gravitação da Einstein e mesmo a rejeitava em público: um mini-buraco negro carregado e com momento angular poderia emitir luz via processo de acreação do ar vizinho, e assim ter duração estável indeterminada. Mas é claro que Tesla, não sendo físico-matemático, não elabora realmente as equações que controlariam o tal relâmpago-esférico/buraco-negro, nem fornece uma idéia de como tal objeto poderia surgir do nada em nossa atmosfera.
Lembremos que Tesla é um engenheiro-inventor, um homem prático, não um teórico, embora seu lado teórico tenha se desenvolvido em seus anos finais. Assim, não lhe basta criar apenas mais uma idéia (na época, já haviam várias outras sobre a origem dos relâmpagos esféricos). Tesla quer e precisa fazer um experimento para provar sua teoria. Assim, contata um colaborador mais jovem e ainda na ativa, o suíço Michel Aegerter, que também tinha algum interesse no assunto, tendo publicado uma teoria de que relâmpagos esféricos seriam aerogéis de silica gerados pelo contato de raios muito energéticos em areia comum.
Extratos das cartas entre os dois pesquisadores foram reproduzidas no caderno Magônia. Nelas, Tesla observa que o fenômeno observado pelo S. S. Pułaski ocorreu no mar, contrastando com as ideias de Aegerter. O suíço responde que a formação inicial da bola luminosa poderia ter se dado sobre um banco de areia atingido por um raio. Ambos notam que a reportagem não relatava as condições do tempo no momento da observação, ou se relâmpagos e raios estavam presentes.
Aegerter possuía na época acesso a um grande laboratório de engenharia elétrica na Universidade de Nova Iorque. Monta então uma equipe informal com pesquisadores admiradores de Tesla, visando testar suas ideias. Percebem que, se for possível criar mini-buracos negros via cargas eletrostáticas, a quantidade de energia a ser concentrada seria enorme. Mas Aegerter e Tesla concordam que a teoria do mini-buraco negro não precisa estar certa: basta que criassem um relâmpago esférico artificialmente para que tivessem elementos sobre como aumentar seu tempo médio de vida. Optam por uma mistura das duas teorias: o raio artificial seria ordens de magnitude maior que os produzidos nesse tipo de estudo e estaria dirigido para uma placa de pura sílica.
Devido à idade, Tesla não acompanha de perto a montagem do experimento, mas é convidado com pompa para o primeiro teste, realizado em uma data não muito alvissareira, treze de novembro de 1942, uma sexta-feira. A partir daí, as anotações se sucedem em um frenesi: algo aconteceu no experimento, algo que nem Tesla nem Aegerter conseguem explicar totalmente, algo em que a física da eletrodinâmica interage com a física do corpo humano, do cérebro humano, da mente humana. É aqui que o caderno Magônia deixa de ser apenas científico e se torna o relato pessoal de uma mente atormentada.
Curiosamente, a primeira entrada sobre o experimento não ocorre no dia do experimento, mas no domingo, como se Tesla estivesse se recuperando de algo muito traumático. Ele escreve em quinze de novembro:
Aegerter ainda não responde aos meus telefonemas.
O que realmente aconteceu?
Alucinações induzidas por indução magnética?
Gases psicotrópicos sintetizados na sílica?
Real? Não, não é possível!
Mas… e as fadas? os anjos? os monstros?
Virgem Maria, Jesus.
Estudiosos do manuscrito divergem sobre o significado da última frase. Afinal, Tesla não era um homem religioso, não caberia aqui ele fazer uma exclamação mais apropriada na boca de um católico. Alguns especulam que a produção do relâmpago esférico afetou a mente dos observadores, por meios físico ou químicos, como bem conjectura Tesla. E que alguns deles, segundo sua cultura própria, viram fadas, outros a Virgem Maria, outros a figura de Jesus. Não fica claro o que Tesla realmente viu.
Seguem-se as anotações dos dias seguintes. São muito breves, como se Tesla quisesse mandar uma mensagem telegráfica para si mesmo em vez de uma descrição completa.
Segunda, 16/11: Ainda não consigo dormir. Súcubos. Belas e demoníacas.
Terça, 17/11: Michel veio me visitar. Compartilhamos as visões. Não são idênticas, mas parecidas. Muitos dos pesquisadores do projeto estão tendo colapsos mentais. Ele ordenou o desmonte do experimento. E diz que está sendo seguido por agentes do governo vestidos de preto.
Quarta 18/11: Uma pequena bola luminosa flutuou em meu quarto. Durou um minuto (ou mais?), e se apagou suavemente.
Quinta, 19/11: Unicórnio em meu jardim, escondeu-se na floresta.
Sábado: Anjos e demônios lutando por mim. Portas do Inferno.
Domingo, 21/11: Michel foi internado, esquizofrenia paranóica. E eu, quanto tempo resisto?
Existe um hiato aqui. Pesquisas posteriores revelaram que Tesla buscou médicos psiquiatras neste período, sem resultados. Os registros retornam em dezembro.
Quarta, 2/12: Michel se enforcou hoje, sem deixar cartas ou bilhetes. Homens de preto?
Sexta, 4/12: O sexo com fadas é extenuante.
Domingo, 6/12: Conversas com espíritos, entre eles Michel. Fantasmas pela casa.
Uma semana sem registros. Sabe-se que Tesla não saiu mais de casa.
Sábado, 12/12: Extraterrenos? Visitei sua nave espacial? Cirurgia. Colocaram algo em minha cabeça. Ou simples paranóia?
Domingo, 14/12: Vozes que não param. Não param nunca. Sem dormir. Tormento.
Segunda, 15/12 Súcubos novamente. Belas e perigosas. Preciso dormir, não aguento mais tanto prazer e dor. Exausto.
Não existem mais registro no manuscrito até seis de janeiro. Nele, uma simples frase:
Morrerei amanhã. Enfim… liberdade.
Nome completo: Osame Kinouchi Filho
Nome artístico: B. B. Benitez
Biografia: Osame Kinouchi é físico e professor da Universidade de São Paulo. Têm contos publicados na revista SOMNIUM do Clube de Leitores de Ficção Científica. Ganhou o prêmio NOVA de 1990 (conto amador). Publicou O Beijo de Juliana – Quatro físicos teóricos conversam sobre crianças, ciências da complexidade, biologia, política, religião e futebol (Editora Multifoco, 2014) e Projeto Mulah de Tróia (Drago Editorial, 2016).
Endereço: Rua Guilherme Schmidt 533 apto 83 – Vila Tibério – CEP 14050-160 – Ribeirão Preto – SP
* Tesla, Nikola (1978). Nikola Tesla – Colorado Springs Notes 1899–1900. Nolit (Beograd, Yugoslavia), 368–370.