RESENHA: A Longa Viagem a um Pequeno Planeta Hostil
Uma aventura divertida, perigosa, curiosa, diversificada e inclusiva, repleta de seres exóticos, adoráveis e assustadores; conheça a nova ficção científica de uma jovem escritora, Becky Chambers, ganhadora do Hugo de Melhor Série
Um dos mais recentes livros de ficção científica que li neste ano que se encerrou de 2021. Trata-se do badalado A Longa Viagem a um Pequeno Planeta Hostil, The Long Way to a Small Angry Planet, de Becky Chambers, publicado em 2014 nos EUA, e em 2017 no Brasil pela Darkside.
DIVERSIDADE GALÁCTICA
Um dos motivos do sucesso de “A Longa Viagem a um Pequeno Planeta Hostil” é seu jeito de contar a história. A influência de Duna, Fundação e Ursula K. LeGuin (A Mão Esquerda da Escuridão) está patente no livro, e elementos essenciais em qualquer bom sci-fi estão muito bem representados, como a narrativa científica (com direito a todas as “tecnobables” típicas do gênero) e mais suas possíveis implicações políticas e econômicas, sociais e até sexuais. Há até algo de Harry Potter na maneira como a autora nomeia diversos objetos e guloseimas que os personagens consomem. O tema central é a “escavação” de um túnel espacial que permitirá à CG (Comunidade Galáctica) uma espécie de “Federação” tão ao gosto de Star Trek, chegar ao tal pequeno e hostil planeta do título, para que este se torne membro dessa união de civilizações galácticas. O que realmente diferencia essa espécie de romance on the road futurístico, são seus personagens: não-lineares, instigantes, complexos, curiosos e absolutamente adoráveis -, por mais detestáveis que um ou outro deles possa parecer. A autora optou por contar a história de “gente como a gente” – ainda que nem todos sejam sequer humanos. A tripulação da nave espacial Andarilha, além do pequeno grupo de origem humana, é composta por indivíduos de planetas, espécies e gêneros os mais diferentes, como uma reptiliana, uma lagarta inteligente gigante de gênero fluido, outro que vive em simbiose com um vírus inteligente que o infecta, e mais a solícita IA que controla a nave, por quem um técnico humano se apaixona. Na sua longa jornada ao centro galáctico, a Andarilha enfrenta dificuldades e desafios. Os dramas pessoais de cada tripulante vão surgindo à medida que dão uma passada em seus planetas de origem ou encontram sombras de seus passados cheios de segredos que nem sempre gostariam que seus companheiros de nave soubessem. Temas como amizade, racismo, poliamor, força feminina e novos conceitos de família fazem parte do universo do livro, assim como cada vez mais fazem parte do nosso mundo. A ficção científica sempre refletiu a sociedade no período em que escrita, mesmo suas histórias se passando em eras remotas do porvir ou do passado. Ao contrário de outros romances atuais que usam e abusam de temáticas inclusivas de um modo um tanto forçado (vide o incensado Justiça Ancilar, de Ann Leckie, cujo único mérito parece ser o uso de linguagem neutra – que, pelo menos na tradução brasileira, deixa a narrativa tão chata quanto confusa). Ao contrário, o livro de Chambers, consegue falar muito mais de diversidade e inclusão, assim como combater preconceitos em todas suas formas sem perder o “sense of wonder” (senso de maravilhamento), um dos elementos chaves da boa ficção científica, em falta em grande parte dos romances mais recentes.
O PRIMEIRO LIVRO
A Andarilha, a não muito bonita, recauchutada e eficiente espaçonave de nossos heróis é uma “escavadora de túneis em buracos de minhoca”, com o objetivo de criar passagens entre os planetas da Comunidade Galáctica, um conglomerado político de civilizações da Via Láctea, onde os humanos não são fundadores nem os mais importantes membros. A Terra se tornou inabitável e após colonizar Marte, a humanidade se expandiu pelo espaço, até ser acolhida pelos povos da CG, que a recebeu com benevolente curiosidade.
As naves escavadoras têm a função de “perfurar” túneis espaciais para que se tornem rotas navegáveis entre os mundos da Comunidade. A Andarilha está sempre em busca de novos trabalhos, mas os ganhos mal dão para a manutenção, novos equipamentos, combustível e salários da tripulação. A Andarilha é uma nave privada humana adquirida pelo capitão Ashby Santoso, um exodoniano (humanos nascidos fora do Sistema Solar, em colônias planetárias ou naves). Ele recebe da própria CG uma proposta de trabalho que pode ser tão lucrativa quanto perigosa: escavar um túnel até um planeta pouco conhecido no centro galáctico, região fora da influência dos principais mundos da Comunidade. O núcleo galáctico é dominado por uma raça agressiva e em guerra constante entre clãs planetários, e que atacam qualquer nave de fora que ouse se aproximar de seu território. Mas o tal pequeno planeta hostil, contrariando os demais de seu povo, é de um clã que aceita se associar à CG.
Para esse novo empreendimento, o capitão contrata uma jovem guarda-livros para cuidar da burocracia e gastos da Andarilha, Rosemary Harper, humana nascida na colônia de Marte, República Solar, e em fuga de seu passado misterioso. Sua chegada à nave forma o fio condutor da história, à medida que ela vai conhecendo e se relacionando com cada tripulante, aprendendo suas particularidades humanas ou alienígenas e se envolvendo cada vez mais com elas. A nave tem outros humanos exodonianos: Kizzy Shao, uma divertida e baladeira técnica mecânica, e o pequeno Jenks, humano adaptado nascido de uma sociedade sectária radical, técnico em computação; ele tem um relacionamento todo especial com Lovelace, a Lovey, a IA que controla a Andarilha. E, finalmente, o irascível e bem pouco sociável Corbin, que também esconde um segredo que trará consequências para todos na nave mais adiante; ele é um “algaísta”, responsável pelo abastecimento do “combustível” da Andarilha, feito à base de algas criadas em tanques. Os demais e mais interessantes tripulantes são alienígenas, como Ohan, o Par. “Eles”, como fazem questão de ser chamados, são o navegador, composto por um Sianat hospedeiro do vírus inteligente que o infecta, o Sussurro, numa simbiose que os faz capazes de realizar na ponta do lápis as mais complexas equações envolvendo as passagens dos buracos de minhoca. Sissix é a adorável piloto reptiliana aandriskana, vinda de uma sociedade extremamente social e complexamente coletiva; Dr. Chef é um Grum, uma espécie de lagarta gigante, de gênero fluído, transitando entre o masculino, o feminino ou ambos; ele/ela é o cozinheiro e médico não-humano da Andarilha, um dos últimos de seu povo em processo de extinção devido a guerras. Com sua dupla habilidade, Dr. Chef é versado em tudo que se refira aos gostos e necessidades alimentícias de cada planeta conhecido e tripulante da nave, assim como conhece a anatomia e patologias de cada um deles e de outros povos e mundos. Por falar nisso, Lovey, a IA da nave, tem de cuidar especialmente de escanear cada ser que entre nela, para evitar que algum vírus ou forma de vida microbiana possa ser potencialmente perigoso aos diversos seres que compõem a tripulação. Isso, enquanto realiza inúmeras outras funções técnicas e evolui em seu comportamento social com os tripulantes, especialmente seu preferido, o técnico de computadores Jenks. Enquanto isso, o sóbrio e eficiente capitão Santoso tem um relacionamento secreto com Pei, uma aeluoniana comandante de espaçonave numa zona de guerra na periferia da galáxia. Os aeluonianos são considerados por todos como uma das mais belas e orgulhosas raças alienígenas da CG, mas tão xenófobos que, se o caso deles viesse a público, ela seria execrada por manter um relacionamento com um alienígena… ainda mais um desses humanos sem planeta natal.
No meio do caminho da longa viagem ao “pequeno planeta hostil”, a Andarilha enfrentará diversas ameaças, de leis e códigos planetários tão diferentes quanto perigosos, piratas espaciais (ou refugiados, na visão deles), e as tensões decorrentes dos vários relacionamentos (secretos ou não) entre os tripulantes, amores, doenças e incidentes, escaramuças e aventuras. Mas os tripulantes da Andarilha não são heróis de aventuras pulps. Até cumprir sua missão, os tripulantes da Andarilha tentam resolver suas questões com inteligência ou emoção, coragem ou medo. Afinal, eles são gente como a gente, mesmo que tenham rabo, escamas, antenas ou pseudópodes.
A Longa Viagem a um Pequeno Planeta Hostil é o primeiro livro de Becky Chambers, fazendo parte de uma quadrilogia chamada lá fora de Wayfares, cada um com uma história independente e fechada. Mas eu bem que gostaria de novas aventuras da nave-escavadora Andarilha e sua inigualável e simpática tripulação.
A AUTORA
Becky Chambers é uma revelação na moderna literatura sci-fi. Filha de cientistas espaciais, sempre que precisa, checa informações para suas histórias com a mãe, especialista em astrobiologia, e com o pai, engenheiro espacial. Geek de carteirinha, Becky recorda com carinho da primeira vez em que assistiu a um episódio de Star Trek: Next Generation, aos três anos de idade. A escritora adora jogar games no PC e RPGS de papel e caneta. A Longa Viagem a um Pequeno Planeta Hostil foi publicado inicialmente através de financiamento coletivo, até ser descoberta por uma editora. Ela também afirma que “prefere piratas a ninjas”, seja isso o que for… Californiana, atualmente vive em Londres, com sua esposa, a agente literária Berglaug Asmundardottir.
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