GAMES: DETROIT (Por Gerson Machado de Avillez)

Há 30 anos, os videogames seriam apenas uma curiosidade do ramo de entretenimento, sem saber que tínhamos em nossa frente uma das mais novas das grandes artes. Arte esta que emergiu como caçula ao lado das artes digitais pelo aumento na qualidade e complexidade de seus jogos, superando em muito o manifesto das sete artes postulado por Ricciotto Canudo (1923). Desde ‘Pong’ há uma evolução da narrativa de jogos com histórias complexas e multifacetadas que parecem hoje, mais do que nunca, rivalizar com Hollywood seja pela exuberância de gráficos e músicas ou pela interatividade. Isto é de tal modo que por vezes perguntamo-nos se estamos assistindo jogos ou jogando filmes. Não é por menos que o mercado dos games hoje tem lucros exorbitantes e produções mais caras que muitos filmes. Jogos como ‘Detroit: Become Human’ parecem rivalizar filmes como ‘Black Mirror: Bandersnatch’, no qual este segundo fora francamente inspirado.

‘Detroit: Become Human’ (2018) parece ser um marco onde os profissionais do cinema parecem mais do que flertar com os videogames, eles sinalizam uma possível migração. O jogo foi produzido pela Quantic Dream, conhecida por jogos cinematográficos com densas narrativas que rivalizam o mais dramático filme de ficção científica. Ainda que seu enredo não seja dos mais originais, aqui entra o grande mérito da décima arte: explorar uma narrativa de inúmeros rumos e garantir enorme complexidade aos personagens que se desenvolvem, ou morrem, durante a trama. A princípio seguimos as histórias dos androides Kara, Markus e Connor, desde o ‘despertar’ da consciência até sua luta por liberdade e autonomia. Esta luta culmina numa revolução liderada por Markus, cujas decisões determinam o êxito ou fracasso de sua empreitada. Há claras alusões e referências a filmes como ‘Blade Runner’, por exemplo, quando o androide policial ‘Connor’ passa a questionar seu papel na trama ao avançar nas investigações para deter outros androides. Além disso, mesmo as perguntas dos diálogos podem influir dramaticamente nos rumos da história apresentada.

As imagens belamente dirigidas por David Cage (que também assinou o roteiro ao lado de Adam Williams), são pontuadas por uma bela trilha sonora, cujas interpretações rendem momentos marcantes para o jogador. Um destaque é o Tenente Hank Anderson, parceiro de Connor e interpretado por Clancy Brown (aquele “amigo” de Desmond Hume em Lost), que torna-se um potencial aliado apesar de ser inicialmente preconceituoso com os androides. A interpretação de Lance Henriksen (Millenium e ‘Alien’) rende bons momentos como o sábio tutor e conselheiro de Markus, assim como em sua jornada para se tornar líder da revolta dos androides. Afinal, uma bela metáfora para a discriminação dos mais variados tipos.

Os rumos do jogo criam vários caminhos que fazem seus protagonistas se cruzarem ou não. Mesmo a visita de Connor ao criador dos androides da CyberLife rende momentos icônicos pelos rumos a que levam os diálogos, tornando preciso jogar várias vezes para degustar as nuances que tornam-se ainda mais complexas que as de ‘Black Mirror: Bandersnatch’. Mas, ao mesmo tempo, com a mesma profundidade filosófica e reflexiva que remete aos melhores textos de Philip K. Dick.

Ainda que sem a mesma liberdade de jogos como ‘The Last Of Us’, este jogo desponta como uma quase fusão das artes. Coisa que apenas o cinema outrora aspirava fazer, ao convergir a escrita (roteiro), fotografia e música. Mesmo as limitações do jogo servem um propósito narrativo, pois demonstra a chance dos androides que são controlados pelos jogadores se libertarem da programação que delimita seu campo de atuação. Isso pode ser visto claramente no começo do jogo quando Kara fica no limiar de romper os grilhões dos comandos de seu agressivo tutor ao bater no que seria sua filha. A decisão de romper tais limites fica a encargo do jogador podendo isto significar o fim da história para o personagem, ou não. Não bastando todos méritos do jogo, alguns personagens nos surpreendem e há momento de pura emotividade, por exemplo, quando Kara e a filha de seu tutor fogem e encontram outros androides num parque abandonado. Momento que pode levar os mais emotivos às lágrimas.

Sem dúvida é um jogo feito para repetir várias vezes pois, apesar da liberdade de jogos como ‘The Order: 1886’, Detroit tem mais variações na história e alguns easter eggs bem interessantes, como o detalhamento das referências do próprio jogo em livros da estante do dono de Markus ou mesmo as pinturas feitas por ele.

Conheça mais sobre o trabalho do autor no link: www.gersonavillez.jimdo.com

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