Conto: Os Elos do Destino (por Gerson Machado de Avillez)

“Os homens falam sobre matar o tempo, enquanto o tempo serenamente os mata.”
Dion Boucicalt

A moral elevada da T.E.M.P.U.S. era regida sob a tutela da CEET, uma espécie de coordenadoria e corregedoria da agência transtemporal internacional da organização. Dizia-se comumente da transparência e imparcialidade presente no comitê regente, do qual o sigilo era pertinente apenas nas épocas anteriores a seu surgimento, por razões óbvias de proteção da linha temporal. Disto se fazia valer a Ordo Christianistas Ad Ventus, que era uma guardiã sigilosa dos casos de viagem no tempo e por dimensões além da realidade em épocas passadas, como uma protetora da linha temporal até o advento da cronociência, ou crononáutica. Doravante, pensava como os seus inimigos instaurados pela mítica Bug’s Time de uma dimensão paralela se espalhavam por variáveis no multiverso, como um cancro do qual tentáculos atingiam e se infiltravam, não somente na própria TEMPUS, mas em agências de viagens no tempo alternativas, de mundos paralelos.
Foi com essa ideia que parti para minha primeira missão de campo, como cadete recém-formado da TEMPUS. Meu nome é Joaquim Hernandez e para minha surpresa o que descobri nessa missão foi estarrecedor e contra intuitivo a tudo que aprendi no treinamento da academia.
A suspeita inicial que desdobrou o esforço conjunto entre duas agências de dimensões paralelas, foi a invasão na Ordem dos Ventos por agentes do arqui-inimigo da TEMPUS, Designium. A operação que tinha a Time Force, um grupo bélico de militares do tempo de uma dimensão paralela, era liderada pela TEMPUS em campo, mas desde já me deixava preocupado pelo fato do briefing da missão não ter sido inteiramente passado para mim em detalhes, como se escondessem algo que a supervisora, Dayane Conrad, afirmava ser por proteção do tempo.
As notícias das sondagens preliminares anunciavam que os membros da Ordem foram dizimados covardemente numa incursão transtemporal, a qual colocava em risco a criação de uma nova dimensão paralela pela curva de eventos ilícitos a linha da qual era oriunda.
A sede da Ordem dos Ventos naquele tempo parecia estar cercada pela poluição em meio a túneis. A fachada estava toda depredada, pichada e vandalizada, mas a feiura externa era precursora de riquezas sem fim, disfarçadas sob o desprezo do aparente.
Mas ao adentrar o recinto da Ordem dos Ventos, numa data classificada como sigilosa, observei a disposição de maneira deletéria de vários corpos sem vida. Massacrados sem a menor chance de defesa, o fato revelava a covardia brutal e os requintes de crueldade dos membros da Bug’s Time. Se assemelhava a um incidente acontecido num dos braços da Bug’s Time, a Ordo Ab Chaos. Meu supervisor, Dominic Kaspar, permanecia apreensivo. Como meu professor acadêmico pelo qual tinha apreço, sabia que havia sido instruído pessoalmente por lendas como John Roberts, o fundador da Ordem dos Ventos, em tempos medievais.
Dentre tantas coisas, Dominic Kaspar fora responsável por desenvolver minha oitava inteligência, não descrita por Gardner, inteligência temporal. Encontrada em poucas pessoas, é capaz de lidar com paradoxos temporais sem sofrer da narcose temporal facilmente, como teria ocorrido com o lendário mentor de John Roberts, John Octavios. Dominic Kaspar costumava falar para mim durante minha formação que ‘a perfeição é integral, constante, pode errar, mas se corrige’.
A apreensão de Kaspar era maior do que fitar os corpos estirados sem vida dos membros da Ordem dos Ventos, como se esperasse por algo além do que havia sido informado. Ele transpirava nervosamente enquanto caminhava entre os corpos que jaziam em estado avançado de putrefação. Dispondo de um recriador de eventos, tratou de acioná-lo a fim de recuperar informações gravadas no tempo sobre aquele incidente, seguindo a linha anti-horária da entropia num retroceder virtual de eventos. O que vimos foi desolador. Após ver os membros da Ordem subjugados, Designium adentrou o recinto dando seguimento aos modos mais doentios de tortura antes de matá-los. De fato, a Bug’s Time se tornou como uma facção desviada da TEMPUS, mas com aspectos de seita ao nutrir crenças a Cronos e sacrifícios ao deus do tempo, do qual se dizia que a dor e o sofrimento de suas vítimas o alimentava, tal como supostamente teria feito com seus próprios filhos na mitologia de origem.
Com o sangue de suas vítimas nas mãos, Designium agora proclamava que eles eram a Ordem dos Ventos e que toda moral da TEMPUS seria subvertida, pois o destino que tanto lhes incomodava deveria ser rompido para sua vitória. A bagunça que faziam em várias linhas temporais de dimensões paralelas visava desmantelar o multiverso, de roubo de informação autoral, alteração de eventos e acontecimentos oriundos. Eles apelavam a tudo afim de subverter o destino. O fato é que em controle da Ordem dos Ventos parecia torná-la uma arma fatal em posse de seus conhecimentos, tanto de incursões anteriores como de eventos vindouros e paralelos. A ordem detinha informações como um mapa de acontecimentos que interligava todos os desvios de fatos conhecidos do multiverso, o que lhes daria acesso a estas passagens, tal como os pontos de ancoragem que amarravam determinados eventos ao destino vindouro.
O silêncio perturbador do ambiente era rompido apenas pelo som de nossas vozes, assim como dos passos ecoando no vazio. O som de algo caindo levou Dominic Kaspar a correr em sua direção. A escuridão pedia silêncio, pois o silêncio é o breu dos sons. O lugar era um extenso complexo subterrâneo, de modo que os localizarem se tornou uma tarefa difícil. Ao tentar contato pelo comunicador, não obtive resposta até que, ouvindo passos numa sala lateral ao corredor que passava, cessei todos os movimentos me fazendo adentrar naquele ambiente entregue às moscas. Foi assim que vi soldados da Bug’s Time caminhando por entre os aparatos da Ordem dos Ventos, a procura de algo. Estarrecido, temi tomar medidas preventivas estando a sós, pois os homens estavam bem armados com equipamentos de um futuro alternativo. Os soldados murmuravam entre si, quando em meio a conversa sussurrada ouvi a voz de Dominic Kaspar! Meu superior surgiu entre eles, mas ao invés de dar voz de prisão de acordo com os 37 Protocolos de Viagem no Tempo, parecia orientá-los a se retirar.
Fiquei estupefato. Era como fitar anjos conversando com demônios. Temeroso do que poderia advir dessa situação inédita, recuei. Permaneci inerte, fitando-os escondido por de trás de caixas de madeira com artefatos de Ooparts, quando Dominic começou a falar com os homens.
— Saiam logo daqui com seus asseclas ou terei que prendê-los! Não estamos a sós.
— Deixe-o. Ele ainda não cumpriu seu destino — respondeu um dos meliantes da Bug’s Time. — Esse jogo da TEMPUS apenas nos dará a oportunidade que precisamos para destroná-los e fazer nosso próprio universo!
— O caos direcionado oferece pelos extremos uma falsa sensação de liberdade — retrucou Kaspar, completando: — Aproveite-o!
Os dois homens esboçaram sorrisos tendenciosos, repletos de malícia, e deram as costas um ao outro no corredor deixando longas sombras, que igualmente sumiram. Por ter ficado sem reação, guardei o fato para mim e, disfarçando ao notar que Dominic vinha em minha direção, o fitei como quem estivesse surpreso. Fiquei decepcionado com o que parecia ser uma moral cinzenta. “A perfeição é integral, constante, pode errar, mas se corrige?”
— Achou o ‘Tratactus Ad Tempus’? — perguntou Dominic, ainda pálido e desconcertado com aquele encontro improvável.
— Nã-nã-não — gaguejei. — Talvez os homens de Designium o tenham levado, pois era parte do mapa do multiverso e acontecimentos de cruzamento neles. O que acontece agora?
— Voltaremos para a base do futuro e repassaremos todos os dados, o mal foi feito. Para todos os efeitos, estamos numa realidade nova.
Ao retornarmos, notamos que toda leitura da linha de tempo daquela nova realidade nascida na alteração do tempo parecia se adequar, estranhamente, às vidências de uma velha cega e profana chamada Baba Vanga. As previsões dela que não se concretizaram, pareciam ter se tornado fato numa realidade inferior.
Apesar de exausto pela incursão, passei pela bateria de exames de praxe para verificar quaisquer possíveis danos neurológicos comuns a mentes fracas e danos físicos decorrentes das viagens no tempo. Todavia, apesar do check up ter tido resultado positivo, o dia de folga que sucedeu a missão fora de ansiedade. Sem conseguir dormir, fiquei preocupado, com a consciência pesada por não ter mencionado a ocorrência inusitada que presenciara no relatório. Aquilo me levou de volta à academia para consultar os dados de missões e incursões no tempo até aquele momento. Sabendo que os dados de missões e operações apenas ao passado de sua época de origem não eram de domínio público, todas as missões ao passado até o meu presente eram de conhecimento geral, de modo que nomes e ocorrências não registradas e de conhecimento público poderiam implicar apenas em uma coisa: que poderiam envolver dados de missões ou acontecimentos que ainda iriam ocorrer.
Mas como poderia meu professor, aparentemente, auxiliar o próprio inimigo da TEMPUS? Por ter acesso limitado às informações pertinentes a operações ainda em planejamento. Para responder isso apelei a um encontro com a coordenadora do CEET, a corregedora da organização, Dayane Conrad, solicitando por um encontro pessoal, prometendo passar dados comprometedores sobre uma possível conspiração dentro da corporação, algo insidioso e infiltrado não se sabe até que ponto, mas que seria da alçada dela resolver.
Sabia de inúmeros casos de roubo de autoria de dados pela Bug’s Times ao levar conhecimentos e ideias ao passado. Isso, antes de sua criação, com o fim de dar autorias a quem comprovadamente não concebeu a ideia, o que acarretava em desvios de dimensões paralelas, espalhando o caos no multiverso. Por esse mesmo fato, determinados dados e informações eram sigilosos aos que realizavam viagens no tempo, até a data limite para sua revelação, tal como fora concebido originalmente a Ordo Ad Ventus.
Encontrei Dayane Conrad num bar no subúrbio de São Paulo, onde sob aparência de informalidade passei todos os acontecimentos para ela. Para minha surpresa, Dayane demonstrou espanto ao desconhecer tais dados, assim como o pessoal da CEET tinha conhecimento das missões futuras ao passado – ainda antes de serem planejadas – como forma de proteger paradoxos temporais vindouros. Com a abertura ao multiverso em cooperação com outras agências transdimensionais, a TEMPUS compartilhava frequentemente dados de casos e missões, mas nem no mainframe transdimensional constava quaisquer supostas informações sobre aquele acontecimento.
— O que aconteceria se a Bug’s Time ou outra agência transtemporal inimiga tivesse de fato se infiltrado? — perguntei a ela com perplexidade.
— Temos que consultar os protocolos de emergência, mas em tese é virtualmente impossível mudar o destino dessa dimensão, a menos que…
— Crie um desvio dimensional a uma dimensão paralela — completei. — Fiz meu trabalho de casa na Academia, Dayane.
O único modo de viajar ao passado sem parar num universo paralelo, por alterá-lo, seria sendo absorvido pela linha do tempo ou concluindo um paradoxo que existe por si só; a primeira apenas ocorre caso a viagem seja a um passado muito distante e sem grandes alterações, a segunda não temos uma explicação científica de sua origem.
Dayane sorriu. Apesar de ser uma autoridade, ela detinha uma sensibilidade e beleza singulares, e sem autoritarismo coordenava e corrigia sem perder a feminilidade. Eu conhecia a história amarga daquela mulher que fora recrutada à beira da morte num passado de séculos atrás. O semblante alvo parecia reluzir com ternura sua elegância. Vestindo um jeans casual e um sobretudo preto, ela se retirou após dar mais um gole daquela bebida somente possível pela incursão das viagens no tempo. Um álcool derivado de uma planta pré-histórica extinta.
Mas ao se retirar lembrei-me de mais uma coisa a lhe ser dita, o que me fez correr atrás dela, quando saia pelos fundos do bar, num beco. Porém, para minha estupefação, o que vi me consternou. Duas sombras compridas pareciam devorá-la ao lado de três latões de lixo. Ao enxergar melhor notei a silhueta de dois homens que a esfaqueavam com canivetes. Corri em polvorosa a fim de acudi-la, mas empoçada em seu sangue ela apenas balbuciou algumas palavras que inicialmente não compreendi. Como seu epitáfio, as palavras eclodiam dissipando-se com o sangue que escorria pelo chão mal iluminado do beco.
— O designío… O Tratado do Tempo… de John Roberts…
Me indaguei se ela se referia ao cruel Designium ou se ela se referia ao destino que sobrevinha a todos, e do qual a Bug’s Time tentava se desvencilhar. Sem alternativa, retirei-me dali temendo que tivesse que prestar depoimento sobre minha presença ali à polícia. Sabia que cedo ou tarde teria de dar satisfações às autoridades daquela época, que possuíam as mesmas tecnologias desenvolvidas para as viagens no tempo, como o Recriador de Eventos usado nas missões da TEMPUS.
Tomado por um torpor e pela angústia, adormeci no leito após ter o sono induzido pelo manipulador mental, um equipamento que induzia mesmo os sonhos a um estado de sonolência controlada como forma habitual de curar traumas mentais que repercutiam em infinitos pesadelos. Programei sonhos sobre minha namorada de adolescência, mas ainda assim acordei de modo tão perturbado quanto adormeci.
Retornei ao trabalho. Temia que os equipamentos de check up detectassem qualquer anomalia na minha psique, pois eram rigorosos sob as condições físicas e mentais dos crononautas. Não era todo dia que víamos a coordenadora da corregedoria ser morta em nossos braços. Fiquei visivelmente inquieto ao assistir as notícias sobre a morte dela, temendo que fosse descoberto e assim levantassem suspeitas sobre minha presença na cena do crime. Senti uma mistura de alívio e angústia ao descobrir que mesmo o Recriador de Eventos não fora capaz de recuperar os dados do momento de sua fatalidade. Havia algum tipo de bloqueio, o que indicava uma nova tecnologia insidiosa em uso.
A situação na TEMPUS era de consternação, o luto que nos tomou levou a uma paralização geral, dando margem apenas para missões de emergência, a fim de cumprir datas de paradoxos. O rígido código ético da corporação levou a uma reavaliação total dos protocolos de segurança, pois ao buscar todos os dados de contato com si mesmos num futuro próximo, não constava quaisquer variações que eclodissem na morte de Dayane, dando perspectivas assombrosas sobre o que poderia estar acontecendo. Todavia, o sinal do timestream não oscilava como ocorria em casos que surgiam rupturas dimensionais, dando lugar a novas realidades paralelas.
Àquela altura, a paranoia já havia me tomado. Eu não sabia como proceder mediante aquela situação, pois aparentemente estávamos lidando com algo desconhecido. Por sorte, com o cancelamento da missão que participaria, um check up mental detalhado não seria feito, pois o menor fiapo de depressão, síndrome do pânico ou paranoia era detectado.
O saguão de embarque estava vazio, os buracos de minhoca artificiais desligados. Tudo parecia tomado por um silêncio tenebroso, irrompido pelos murmúrios de vozes distantes que discutiam com temor o caso. Lembrava a todo instante das derradeiras palavras daquela dama de honra da TEMPUS. Talvez a resposta estivesse no Tratactus Ad Tempus de John Roberts. Mesmo que ele tivesse sido roubado no passado — o que em parte eclodiu num desvio temporal — o manuscrito de nossa dimensão ainda estava no Museu das Incursões do Tempo, que reunia provas arqueológicas de tais missões, somente protegido pela Ordem dos Ventos.
Usei de todos os recursos possíveis as minhas credenciais como cadete crononauta, mas mesmo que tivesse acesso não saberia o que procurar no documento, um dos primeiros a registrar incursões do tipo num passado distante. Fiquei por uma hora lendo o documento num latim que dominava parcialmente. Observei coordenadas de espaço-tempo sem resposta até que, nas margens de uma página, vi um desenho esboçado pelo próprio Roberts que se assemelhava ao rosto dela. Curiosamente, era datado de um período biológico anterior a ele conhecê-la, o que me levantou a suspeita. Cruzei dados e percebi que os números aparentemente aleatórios abaixo do desenho (mas acima da data), davam coordenadas de latitude, longitude e tempo oriundo. Dados que eram imprescritíveis as missões no tempo ao lado do número da frequência dimensional o qual pertenciam tais coordenadas — tínhamos que nos localizar não somente no espaço-tempo, mas no multiverso!
Fiquei tentado a realizar uma incursão clandestina com o dispositivo de fuga dimensional de emergência. Mas temendo o que poderia me sobrevir como punição ao utilizá-lo fora das situações permitidas, não fui adiante. Parei, até que vi na TV holográfica imagens do bar que revelavam minha presença ao lado da Dayane um pouco antes de sua morte. Naquele instante, todos voltaram para mim seus olhares de suspeita, me fazendo reagir apenas com um sorriso amarelo.
Notei que os guardas se aproximavam, certamente a mando do chefe de segurança, Max Zulu. O rubor me tomava de tal modo que, sem pensar duas vezes, fugi.
Corri em direção ao dispositivo de fuga dimensional, única possibilidade de tentar provar minha inocência. Digitei todas as coordenadas descritas no documento de John Roberts enquanto Max Zulu em pessoa forçava a porta da cápsula dimensional. Mas não a tempo de me ver desaparecer diante dele, o que o levou ao chão.
Agora era oficialmente um fugitivo dimensional, procurado por roubo de propriedade da TEMPUS e de ser suspeito da morte de Dayane Conrad. Precisava de respostas e provas do que acontecia, fosse o que fosse.
O lugar designado pelo documento de John Roberts era aquele mesmo de onde vim, mas num tempo de eras passadas, mais precisamente na pré-história, onde morava aposentado um dos fundadores da TEMPUS, Herbet Stoneset. Caminhei sem saber o que dizer ou fazer, mas a pista de Roberts era clara como se ele soubesse de algo mais, já que não poderia ter tentado impedir a morte de Dayane por implicações físicas. Atravessei uma floresta de samambaias temendo que alguma criatura gigante me devorasse quando fitei a casa de Stoneset, a qual destoava por completo daquele ambiente primitivo. Ele tinha que ter as respostas que buscava.
Ao passar os limites dentro de seu território, o alarme soou revelando o rosto envelhecido de um dos mais lendários crononautas, ao lado do próprio Roberts. O homem me apontou uma arma, pois tais coordenadas eram do conhecimento apenas de Dayane e outros poucos. Ele não esperava visitas além das habituais dos dinossauros.
— Quem é você?
— Joaquim Hernandez — respondi, pálido por temer por minha vida, uma vez que agora tudo era inesperado.
Stoneset cerrou a visão me olhando de cara fechada e insistindo em apontar a arma.
— Bug’s Time, aqueles bandidos do multiverso! Vocês não vão me matar e roubar conhecimentos sobre o tempo! — vociferou ele de modo feroz e rude.
— Não… não… sou da TEMPUS!
— Prove!
Apontei para o bolso e lentamente tirei minhas credenciais com assinaturas dimensionais da TEMPUS, um tipo de frequência apenas oriunda de um tempo e dimensão específicos. Stoneset as olhou desconfiado até que finalmente abaixou a arma liberando a porta para entrar.
O homem parecia aborrecido por ter sido importunado, mas como era ético e integro, ele parecia receptivo, naquele momento, ao dizer:
— Esperava por você.
Consternado, fiquei sem palavras, mas o homem agora me oferecia um chá com plantas pré-histórias que, segundo ele, era bom para “clarear a mente”.
— O senhor é uma lenda, mas vim até aqui por ser uma emergência.
— John Octavios me alertou que esse dia chegaria. Dayane morreu.
Assenti com a cabeça de modo dramático.
— Pobre mulher, uma das melhores que a agência já teve, seu nome será perpetrado pela eternidade, que viva em mundos paralelos! — comentou ele, mexendo com seu bicho de estimação, um arqueopterix (Archaeopteryx lithographica) que estava em seu ninho no quintal. — Há coisas que mesmo a TEMPUS desconhece, meu rapaz. Por favor, sente-se… Razões que a própria razão desconhece movem a luta contra um fatalismo ordinário como influxo de eventos negativos e tóxicos.
Assim sentei-me de bom grado, sentindo-me finalmente mais tranquilo ao observar a vegetação ao meu tempo extinta e o belo réptil voador multicolorido que ele tinha criado solto ali.
— Há muitos anos, quando a Ordem dos Ventos foi criada por John Roberts, ele tinha como membros-fundadores alguns templários desertores ao tomarem conhecimento do futuro e criaturas do multiverso numa batalha secreta.
— Sei da história — respondi.
— Só que você não sabe que um deles era da Ordo Ab Chaos e da Bug’s Time, e sabia antes do evento sobre o caso. Na verdade, John Roberts apenas fora pego e descoberto no passado medieval por um conhecimento “profético” de sua vinda. Um manuscrito preditivo perdido de Designium num tempo ainda mais remoto.
— Por qual motivo nada fora feito?
— Eram elos do tempo, do destino, dos paradoxos que constituem essa linha temporal. Eu sei, eles são execráveis, verdadeiros sociopatas torturadores, homicidas, fraudulentos, em suma, verdadeiros charlatões espúrios. Mas a verdade é que mesmo as atitudes desse mal insidioso têm seu papel a desempenhar no destino, até no tempo dele ser extirpado como o câncer que é, e um deles era a morte de Dayane. Assim como Sodoma teve que ser destruída e o dilúvio ocorrer, nada foi feito para que tais pessoas se corrompessem, levando a justificar isso, pois era para ser assim caso não nos tornássemos uma dimensão divergente.
Stoneset falava de tais paradoxos que se enclavinhavam inclusive com outras dimensões paralelas, com a naturalidade de quem podia viver além de todos os tempos e dimensões.
— Mas como nem mesmo Dayane saberia? Ela era do CEET.
— Apenas a Dominic Kaspar, além de mim e do próprio John Roberts era cabível essa informação, pois a ordem natural é que se alguém souber de um crime nojento como esse, lute para impedi-lo. A Bug’s Time não estava se infiltrando, e mesmo a fuga de Designium ao passado fora comedidamente permitida por nós, pois sabemos o que acarretaria se a impedíssemos. Há tempo para tudo, Joaquim, mas permitir não é aprovar.
— Mas teríamos que impedir isso!
— Ou você é constante ou variável, pois numa equação apenas o primeiro prevalece. Apenas a constante se torna paradigma, pois se torna o único que norteia. Não se trata de não se adequar, mas ser sólido. A constância é harmoniosa, o volátil é inconstante. Não seja ansioso, sabemos de seu coração de ouro. Eles terão o que merecem a seu tempo. Se Dayane não morresse por esses malignos charlatões os grilhões do destino seriam desvinculados. Na mente de valores cinzentos e distorcidos desses loucos arbitrários, eles irão vencer, nos dominar, pois assim diz uma das variáveis do tempo que ainda não conseguiram atingir. Ela sabia de sua figura no documento de John Roberts e apesar de não ter feito nada, tinha suspeitas.
— Mas o que será de mim agora?
— Há apenas mais um elo a ser amarrado antes de revelarem toda a verdade, inclusive sobre sua inocência. Não se trata de sequestros, estupros nem quaisquer desordenados crimes espúrios desses bandidos.
— O que seria então?
— Salvar Dominic Kaspar de ser morto, para que conte toda a verdade. Que o inocente, demonstrando que sua aparente fuga era uma missão não oficial prevista nos paradoxos. Esse simples ato que separa o tempo vindouro que é o destino do futuro distópico dominado pelas arbitrariedades e desiguais injustiças deles. Você receberá as coordenadas que serão a chave para iniciar as buscas pelos verdadeiros culpados pelo crime que matou Dayane. O destino é vingador. Por isso eles fogem dele, tentando estabelecer seu próprio destino desproporcional.
Stoneset assim o fez dando-me números num papel e disse:
— Finalmente me livrarei desse fardo de segredos tão ultrajantes!
Em posse daquelas informações e coordenadas parti da casa de Stoneset para cumprir o destino que me definia. Sabendo agora que fazia parte daquelas intrincadas engrenagens do destino, retornei num lugar vazio sabendo que o pessoal da TEMPUS seguiria meu rastro de viagem temporal. Adentrei uma biblioteca dois meses após a morte de Dayane. Observei dois homens de preto caminhando de modo suspeito quando vi Dominic lendo antigos livros numa pesquisa analógica. Gritei por ele instantes antes de ser atacado. Em tempo hábil ele se defendeu, esquivando-se e desferindo tiros neutralizadores, pois em nosso tempo armas letais são proibidas.
Dominic olhou para mim e sorriu. Acenei de volta, enquanto ele me fazia uma pergunta.
— Você encontrou Sotneset? E sabe de tudo?
— Sim.
— Como você sabia que iria ser atacado?
— Era o último sigiloso elo a ser fechado. Agora a verdade poderá finalmente ser revelada a todos.
Quem diria que mesmo sem saber, e ao contrário do que temia, eu era um dos elos do destino.

NOTA: Esta história pertence a um “multiverso compartilhado”, que também se estende aos contos O Jogo da Dominação e Bocejo da Morte, aqui publicados.
Outras informações no link: www.gersonavillez.jimdo.com

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