CONTO: Universidade do Ódio (por Gerson Machado de Avillez)
“Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro.”
Friedrich Nietzsche
Maio de 1980
Mais um dia promissor do novo alvorecer da humanidade na pesquisa da ciência nazista. Após apresentar minhas credenciais aos oficiais da SS que guardavam a entrada da Universidade Himmler, fui cumprimentado por alunos eleitos às vagas por sua pureza racial. Livres de máculas genéticas e bastardias, eles tinham mentes e corpos sãos, aptos a aprender a promissora medicina antroposófica do qual lecionava após receber meu doutorado em Magnetoterapia na mesma universidade fundada por Himmler em 1956. Abaixo de um busto dele havia as inscrições: “Ao reavivamento das ciências sofísticadass e das artes falaciosas. Onde a verdade é definida pela vontade da retórica, do pensamento mágico que, por nossa vontade, salvou o nazismo da Grande Guerra e mudou a verdade como na imaginação.”
Ao som de uma orquestra de crianças que louvavam Adolf Hitler como um verdadeiro deus, pude contemplar aquela letra.
Führer, mein Führer, von Gott mir gegeben, beschütz und erhalte noch lange mein Leben
Du hast Deutschland errettet aus tiefster Not, Dir verdank ich mein täglich Brot
Führer, mein Führer, mein Glaube, mein Licht
Führer mein Führer, verlasse mich nicht.
Como doutores, seguíamos uma pesquisa, a qual evoluía da aplicação contra rejeitos genéticos através da frenologia, a teozoologia de Lanz von Liebenfels, mas assim que adentrei fui tomado de espanto por uma surpresa. John Foster havia recebido a morte misericordiosa pelo Reich após descobrir impurezas em seu karma que determinavam sua inferioridade. Assim, fui informado pela minha assistente, ao entregar o documento que formalizava sua benevolente eutanásia.
— Mas ele era puro sangue ariano em seis gerações anteriores! — Conclamei eu, invocado com a notícia da perda de quem nutria estima e amizade.
— Ele mesmo fora reprovado na frenologia, o que, por não ser em razão da ancestralidade, parece ter pares apenas no ato que lhe concebeu durante um ritual ao Sol Negro. Não enxerga os fatos? Por causa das aberrações fisionômicas, isso indica que ele fora concebido por uma entidade; logo tivemos que libertar ele do corpo para que sua alma evoluísse.
— Mas tinha bom comportamento mesmo ante o efeito lunar em sua astrologia, nunca teve quaisquer desvios de conduta a não ser se afeiçoar àquele supersticioso grupo subterrâneo de resistência cristã.
Apesar de todos terem obrigatoriamente papéis impostos a desempenhar na sociedade e classes às quais eram inseridos à força, sabíamos de uma resistência de pessoas de todas as religiões, etnias e políticas que se uniram contra a Nova Ordem Mundial germânica ao impor nossa superior religião mundial pelo bem da humanidade e como salvação da mesma. O próprio cristianismo era uma corrupção degradada do judaísmo que abraçava párias que nasciam condenados por sua inferioridade. Mesmo os católicos, em sua tolice não enxergavam que serviam o estorvo judeu dessa religião desprezível ante a nova religião ariana que exaltava os valores da raça superior, o próximo passo da evolução humana. Mesmo aspectos aproveitados de outras crenças, como o horóscopo, foram absorvidos a fim de aperfeiçoar a humanidade a seu ápice.
— O senhor tem que manter a mente aberta, Dr.Klaus Valentin. Isso não isenta que nascimentos em determinadas datas como ser de touro tornam a pessoas potencialmente preguiçosas e de mau caráter. Não podemos arriscar. Além do mais, sua afeição ao dito grupo cristão é execrável, um bando de supersticiosos que são contra o sacrifício benévolo de pessoas como ele! Tentamos antes usar outros meios, mas a iridologia confirmo. Não teve jeito, tivemos que impor a solução conforme os protocolos.
Ao ouvir aquilo sentei-me à mesa de meu escritório cabisbaixo com a notícia ao perder meu amigo estimado enquanto a assistente falava e falava.
— Olha, compreendo como o senhor se afeiçoava a ele, são como cães, nós amamos, mas as vezes chega a hora de dar cabo da vida deles. — Completou ela pondo as mãos nos meus ombros tentando me consolar. Chegamos tentar usar de radiestesia e cristaloterapia por meses, mas sem resultado era uma questão de apometria sem cura. Não contamos da descoberta para o senhor antes pois sabíamos de como era acurado com seu pupilo. Mas pense de modo positivo, graças aos avanços realizados nos rituais do Sol Negro alguns cientistas têm postulado que o sol negro pode ser um fenômeno físico tangível de modo instrumental. Um artigo publicado na Scientific German atesta a possibilidade de objetos massivos e negros nos confins do universo. Como se fossem buracos negros.
— Tudo bem, e os pacientes tratados com a magneterapia?
— O quadro deles está estável, mas sem evolução. Não podemos desistir agora, pois isso pode ser a chave para a ascensão final da nova raça emergente. Mas caso queira o senhor pode tirar o dia de descanso dada a notícia. Vá até uma casa de cristaloterapia ou praticar Fitoenenergética o sucessor do imortal Füher está para anunciar novidades na nova ciência universal, conseguimos compilar muito com as civilizações inferiores subjugadas, mesmo que inferiores como raça a exemplo dos negros e judeus, eventualmente eles descobriam coisas importantes. Não que não descobriríamos cedo ou tarde, mas ainda assim valioso para gente.
— Obrigado, Evelyn. Mantenha-me informado. — Terminei retirando-me quando então ela voltou-se para trás e disse.
— Senhor, leve esse memorando. Olhe, os últimos clones de Hitler tiveram êxito, estimamos que dentro duas décadas mediante a reprodução exata de suas vidas teremos um sucessor legítimo ao Reich. O projeto chefiado pelo brasileiro Vilson Barbacena já eliminou os clones inferiores, estamos aparando as arestas. Estamos apenas no início do Reich de mil anos!
Ao pegar o memorando ela apertou minha mão fazendo-me sentir uma estranha espetada por algo na mão dela, mas sendo ignorado pela mesma eu pego também um sobretudo por mim lá deixado fim de semana e retirei-me do centro de pesquisa e dirigi-me até uma casa de terapia por cristais onde poderia relaxar ao tentar esquecer-me de meu estado enlutado por meu amigo.
Durante o percurso através de um dos últimos cocheiros negros de nosso mundo metia as mãos no bolso do sobretudo notando haver uma carta. Ao retirá-la, notei ser a grafia de meu estimado amigo Foster. Fui tomado em perplexidade e tomado por um súbito interesse a abri de modo a desvelar um conteúdo que me faria mudar tudo o quanto pensava antes sobre o Reich.
Os fracos não eram capazes de compreender que a ciência nazista determinava o sacrifício benevolente dos deficientes e negros, pois sendo indignos de viver, elas nasceram apenas para sofrer, assim o nazismo em sua misericórdia os poupavam da vida pesada os matando por causa de sua inferioridade. A natureza humana sabia reconhecer instintivamente pessoas inferiorizes a quem os fracos chamavam de discriminação, mas aberrações como bastardos, deficientes e mestiços não eram viáveis a uma sociedade cuja pureza deveria ser inquestionável por sua ciência sublime e suprema. Como poderíamos ser cruéis a ponto de deixar que tais como cães se reproduzissem se multiplicando pelo mundo com proles que aspiravam a praga? Crueldade é permitir que tais seres inferiores nascessem apenas para sofrer por serem tão inferiores e indignos da vida! Nosso pensamento mágico tinha soluções para essas grandes questões de modo prático, coisas que apenas a vontade dos fortes compreendia. Erámos a grande raça ariana, a eleita e escolhida para salvar o mundo daquele flagelo e o único modo de libertar o mundo de doenças mentais e físicas é matando os doentes e pessoas cuja genética degenerada despontava apenas para serem receptáculos do ódio natural aos homens que sabem instintivamente o estorvo que tais são para o mundo. Hoje o mundo é predominante por mentes e corpos sãos onde a beleza e sanidade são consagradas ao reivindicarem sua posição de direito no mundo onde os hospitais nos servem apenas para pequenos tratamentos de eventuais ferimentos. Bastou-se da loucura de prolongar vidas destinadas a morte ou sofrimento!
Aquele pensamento me acalentava ante a perda de meu amigo até que ao ler o conteúdo da carta notava uma confissão dele de que na verdade estava sendo morto por alta traição. Ao que consta as pessoas haviam descoberto algo desconcertante dele com vínculos com a FLAE (Frente de Libertação Anti-Extinção). O grupo que reunia renascentes católicos e mesmo protestantes após o decreto que punha fim a estas religiões inferiores eram taxados pela Gestapo como um grupo terrorista de alta periculosidade.
“Prezado, Dr.Klaus. Acautelo-me mediante tais palavras, mas que dada a urgência do caso não vejo a quem recorrer a cerca de verdades que o Reich alemão oculta em prol de seu poder inexpugnável. Por meses meus algozes foram tomados por um mesmerismo que me acossou de minhas liberdades sexuais ante inúmeros interrogatórios feitos sob absoluto sigilo. Dr.Joseph Goebells está morto há mais de um ano! Ao que consta ele teria sido morto por um membro da FLAE em 28 de abril de 1979 após ser envenenado. O governo oficialmente vem se utilizado de vozes e imagens sintéticas afim de perpetrar a ideia de que ainda está entre nós, quando na verdade a grandiosa propaganda nazista vem recebido instruções dele através de sessões espíritas de nossas videntes em Thule. Porém, mesmo que investigações secretas por meio de cristolomancia e sessões espíritas envolvendo a Gestapo e a SS não tem conseguido lograr êxito. Por isso estava a ser interrogado em segredo por meses pois alguns descobriram minha associação com um cristão da FLAE de modo que por meses eles estavam seguindo meus passos de perto. Caso o senhor esteja lendo essa carta creio que sua vida também corre perigo, pois eles desconfiam de minha relação com o senhor, por nossos estreitos laços de amizade e como bem sabemos a soberania do Reich não aceita quaisquer associações com inferiores, indignos ou resistentes.
Fique atento pois em breve iremos contata-lo sobre coordenadas, mesmo que acredite que ao ler essa carta possivelmente eu esteja morto.
Tem coisas que apenas a burrice é capaz de entender tanto quanto o ódio e a inveja. Precisa-se ser burro para entender que a ofensa, ameaça e coação são argumentos, que a discriminação tem sentido, que o ilógico e irracional é bom caso tenhamos vontade, pois apenas a doença da inteligência se incomoda com o que te julga por qualquer coisa que não sejam seus atos. Na mediocridade paira a felicidade da ignorância, no simplista a praticidade cotidiana no acrítico. Pensar doí a alma, enxergar os problemas do mundo deprimem. A dor do pensamento pelo descontento da imperfeição, da sistematização do ignóbil. Apenas tábuas rasas não são deprimidas e infelizes. A inteligência traz sofrimento, tanto quanto a ignorância a felicidade senil. Bem-aventurados os retardados por não sofrer pelo que não querem compreender, não querem a verdade, não querem o perfeito nem a bondade da isenção. A burrice é a nova sabedoria!”
Apesar de a carta ter sido assinada com um pseudônimo, Milton Fontana, provavelmente utilizado na resistência como código, sabia que ela era de meu amigo Foster, que via agora que se utilizava frequentemente de códigos e metáforas a fim de passar mensagens dirigidas à FLAE sobre verdades duras demais para serem ditas abertamente no Reich. Diziam que a FLAE, apesar da discordância diversa em suas crenças, era unida pela sobrevivência comum ainda que muitos marcados com os sinais ocultistas do extermínio, como a estrela de Davi ou uma seta apontando para baixo indicando, ironicamente, que foram obrigados a descer aos subterrâneos a fim de sobreviverem.
Quando finalmente adentrei a casa terapêutica fui recebido calorosamente, mas agora desconfiava de olhares que me fitavam de soslaio entre membros e clientes. Pareciam alheios e entregues ao ocaso, mas o Reich tinha milhões de olhos por todos os lugares. Assim sentei-me e fitei a televisão que transmitia um discurso de Heinrich Himmler. Com as mãos trêmulas e numa cadeira de rodas o homem apesar da débil saúde demonstrava um vigor de palavras inabaláveis enquanto pronunciava:
“Com as décadas passadas o mundo outrora superpopuloso por pobres e degenerados genéticos que eram um peso para a sociedade dava lugar para que florescesse pessoas as quais a pureza do sangue as compilavam a grandeza abraçada por direito ao serem escolhidas de privilegiadas. O grande sacrifício benevolente do holocausto global cessava milhões de pessoas na África tornando suas pradarias novamente livres a vida selvagem enquanto seus corpos eram reutilizados como adubo para o solo em longos pastos para nossa cultura vegetariana. Bastardos, negros e mestiços são como fezes e suas mães como putas, justo e apropriado esse fim. Finalmente tiveram sua função no mundo como os excrementos que sendo sobras deveriam servir de base apenas para vidas mais úteis como a dos vegetais. Eles teriam lugar no futuro apenas nos museus onde corpos destinados aos estudos científicos seriam empalhados e mostrados num futuro próximo o absurdo de conviver com seres tão deprimentes e miseráveis. Seriam motivo de riso suas peles escuras e suas bizarras origens bastardas e mestiças como se fossem mesclas de demônios, quimeras vencidas pela força da raça escolhida em sua pureza! As pobres almas libertas de seus corpos tornavam aos eons na esperança de evoluírem e quem sabem reencarnarem como algo geneticamente superior.
No nosso mundo a mulher como apêndice do homem passou a ter seu lugar ao servir carregando em seu ventre o futuro da grande nação ariana que se torna o mundo no apogeu de uma nova era de pureza sem a imundice de cepas genéticas e espirituais inferiores! O povo agora louva em almoços a nova religião iniciada por nosso messias, o Füher que extirpou as doenças sociais de crenças materialistas que eram as religiões judaicas como o cristianismo.
Mas temos ainda muito trabalho a fazer. Os livros precisaram ser reescritos, tanto de história quanto os de ciência que escritos por judeus e outros inferiores apenas descobriram o que certamente um dia descobriríamos. Convém que estes sendo menores saiam da história e sejam abandonados pelos fatos afins do ímpeto de uma verdade superior que advenha livremente por nossa vontade. Pois apenas o desejo é verdadeiro. Aquele estorvo não tinha lugar na história por serem uma mácula aberrativa na evolução da raça humana. “Mas o mundo finalmente está terminando seu expurgo que purifica o mesmo daquelas mesclas proibitivas de genes, raças e bastardias inferiores que os relegavam a nascerem condenados por suas almas negras.”
O terminar o discurso uma salva de aplausos o ovacionou unanimemente ante o parlamento do que era agora a Nova Berlim. Hitler, ausente por problemas ainda mais severos de saúde, tinha notícias periódicas de que era como uma firme como uma fênix a renascer, restaurada, tal como Berlim, e que ele reinaria no Reich de mil anos como imortal.
Durante o tratamento terapêutico, segui fornecendo urina para exames e tratamentos por urinoterapia e após uma sessão de quiropraxia, fruto do sincretismo de nossa beneficente religião universal que abrangia a tudo, sentia-me relaxado e recuperado ainda que tomado por anseios que me permeavam pelo inconsciente. Ainda que me lembrasse dos áureos tempos em que era caçador de mestiços sentia-me aliviado em saber que meus genes e espírito estavam isentos de qualquer poluição que relegasse minha qualidade a inferioridade.
Quando ia para casa fui abordado por um homem de terno preto e com forte sotaque norte-americano da renascida República Germânica Americana. O sujeito tinha óculos redondos e chapéu-coco preto. Fumava um charuto e sorria sarcasticamente quando me abordou.
— Adorável Dr. Klaus. Sabemos perfeitamente de suas inclinações de tolerância com inferiores e resistentes com os que tinham vínculo com seu estimado Dr. Foster. Por isso, venho a você fazer-lhe uma proposta retentiva caso não queira ser inquirido e julgado por associação a terroristas.
O homem então embaixo de uma marquise tirou do sobretudo um envelope e de dentro dele documentos classificados que pareciam remeter a PIQR, Polícia Internacional de Questões Raciais. Logo fitei documentos com o perfil de Foster e outros aquém; ele era acusado de associar-se a uma mulher chamada Anelise Mayla, Verena Birman e Joaquim Maxwell.
Logo que o sujeito em tom ameaçador me lançou a proposta, estremeci nas bases ao perceber haver diversos homens deles posicionados ao meu redor de modo camuflado. Um no telhado com um rifle de precisão, outro escondido dentro de um furgão e mais dois dentro de um gol preto da Volkswagen. Não tinha defesas, não tinha a quem recorrer, restava-me ouvir de modo licencioso as amargas palavras daquele homem.
— Acompanhamos por anos as suspeitas que recaiam sobre Foster mediante os indícios de ser um judeu bastardo. Lamentavelmente alguns nazistas maculavam seu espírito ao estuprarem judias em campos de extermínio, num deles nasceu. O pobre diabo conseguiu de alguma forma escapar do extermínio sob a alcunha de uma identidade falsa como bem entende. E não somente, passou anos estudando-nos com o apoio do FLAE para que, se infiltrando, tentasse nos inocular seu veneno como uma cobra peçonhenta.
— Soube disso — comentei, gelando até os ossos ante o tom aterrador daquele homem.
— Mas agora acabou! Estamos perto de desmantelar o FLAE após décadas de pesquisa ao sabermos que ele tem ligações com estas pessoas a quem julgamos suspeitas de um atentado contra nosso grande homem da propaganda, Goebbels. O que tenho a lhe propor é o seguinte: nós apagaremos os arquivos que o associam a ele caso colabore seguindo as pistas que sabemos que ele lhe deixou. Se infiltre no FLAE. Dentre os planos está reunir um catálogo profano genético e de livros e conhecimentos de todas as culturas e povos que mereciam ter desaparecido da Terra como o próprio agora foi.
— Um absurdo! Por qual motivo alguém guardaria genes impuros de negros, judeus e outras cepas?
— Sim, soubemos que eles têm até mesmo bíblias católicas! Parece que as fogueiras e praça pública não foram o bastante!
O homem parecia agora possesso, consternado com aquele absurdo. Seus olhos brilhavam e ruborizado ele parecia incorporar um ódio sobrehumano. Segurou firmemente os papéis nas mãos, a ponto de amassar os profiles dos suspeitos, quando, fitando-me diretamente nos olhos disse de modo severo:
— Sabemos de seu louvável trabalho no encalço de mestiços em décadas anteriores e por esse mérito honrável iremos lhe dar essa chance de descobrir onde fica a base deles e nos dar as informações. Estaremos de olho — reforçou o homem me olhando após eu assentir.
Ele retirou-se enquanto tirava um frasco daquelas drogas psicoativas que usavam desde a guerra e adentrou num dos carros sem tirar um olhar intimidador de mim. Fui para casa e não consegui mais dormir consternado por aquela abordagem tão funesta e psicologicamente aterrorizante quanto daquele homem.
Mas logo o telefone tocou as 3 horas da madrugada. Ao atender um silêncio tomou sendo seguido por luzes que piscavam na janela do quarto de meu apartamento. Parecia ser um sinal em código Morse que indicava S.O.S.. Logo levantei-me a fitar pelas persianas da janela notando haver a mulher que havia visto na foto do arquivo daquele homem de preto misterioso.
A mulher notou minha presença e acenou prontamente para mim. Era Anelise Mayla, que me aguardava escondida do lado de fora da varanda. A mulher jogou-me um bilhete que traçava um mapa para onde deveria ir o que fiz de bom grado madrugada adentro; uma vez que me encontro com sono, não havia logrado êxito. Adentrei um armazém abandonado e de acordo com as instruções arrastei um armário desvelando uma tampa que dava a um subsolo oculto naquele lugar. O abri e desci prontamente os degraus da escada de ferro enferrujado a fitar a escuridão entrecortada pela minha lanterna ante o labor que era caminhar num ambiente fétido. Logo, fitei um vulto que murmurou algo baixinho e se esgueirando como um rato adentrou uma brecha numa parede derrubada o que repeti livremente de bom grado. Ao adentrar a pessoa baixou o capuz revelando-se como Anelise. Seu rosto angelical e cabelos cacheados destoava do ambiente imundo que lhe cercava, mas ela parecia estranhamente incólume ao receber com um sorriso exitoso ao convidar-me a passar por uma porta onde era sediada parte da resistência.
— Seja bem-vindo Dr. Klaus. Sabemos de você por longos anos e através do falecido Foster que o acompanhava de perto visava ter cuidados especiais contigo por razões similares de origem. Não teve a chance de alerta-lo sobre sua natureza genética camuflada por anos afim de poupar sua vida.
— Do que vocês estão falando?
Uma senhora pediu meu pulso para tirar amostras de meu sangue o que cedi prontamente a fim de ganhar confiança deles.
— O senhor é um judeu. Toda frenologia é uma mentira, lamento informar. Ao que consta você fora adotado em segredo pela esposa de um membro da SS, diria uma alemã consternada com o que acontecia nos campos de extermínio. Deus a tenha. O fato é que ele trabalhou por anos com documentações afim de garantir uma vida para você como cidadão alemão.
Ao ouvir aquilo, minhas bases foram abaladas. Fiquei legitimamente pálido ante aquela possibilidade atroz de que após anos ter matado mestiços e outros racialmente impuros eu poderia ser um desses. Era como uma piada cósmica de mal gosto. Quem limpava o mundo daquela impureza na verdade também era a própria sujeira! Aquilo não batia com a quiromancia feita sobre as linhas de minhas mãos que indicava um futuro de pureza. Como pode eu ter em meus próprios genes tais impurezas e inferioridade em minha genética e não percebi? Estava condenado desde nascer sem que percebesse? Seria toda aquela ciência ariana em ascensão uma fabulosa mentira?
— Lamentamos, mas por esse elo em comum o convocamos a fazer parte disto. Sabemos que algo quando não torna a vida de quem presta melhor, não presta. Pois até o crime favorece uns, os errados. Mas aquilo na superfície é uma mentira, pois a verdade foi obrigada a descer. Crenças masoquistas favorecem apenas os sádicos, não um mundo melhor, pois niilismo nunca norteará a não ser ao abismo.
Com os olhos mareados eu então virei-me para trás pois acreditava estar sendo seguido afim de entregar aqueles pobres homens agora obrigados e viverem como ratos. Mas nada aconteceu, porém, repentinamente Anelise percebendo esse meu comportamento obrigou-se a relatar a abordagem ocorrida os alardeando a mudarem suas posições. Fui apenas usado a fim de entrega-los e ser entregue.
Fora então que naquele momento descobri a verdade quando a senhora vociferou ter encontrado algo no meu sangue. Havia rumores de uma doença criada em laboratório para atacar genes específicos e ela havia sido confirmada no meu sangue. Às vezes por tantas vezes ser montado o cavalo aprende o caminho do mal as próprias pernas.
Uma doença criada em laboratório que faria o trabalho de livrar parte dessas vidas miseráveis de suas vidas patéticas destinadas a inferioridade, vírus que atacavam apenas genes específicos de negros e outras raças tal como determinadas doenças genéticas que se encarregaram do trabalho poupando material de gases às balas de nossos soberanos soldados. Eles chamaram simpaticamente essa cepa ultra-agressiva de coronavírus de conoranazismo, pois em arianos manifesta-se apenas com os espirros de um resfriado, mas a cepa inferior tem 95% de letalidade. Não há beleza no que não se vê.
O problema do mundo é que ao longo da história os que são dignos de morte matam os que não são a pretexto do que eles mesmos são. O que é a loucura senão a hipocrisia sem máscaras? Sabíamos nós que estávamos condenados, mas a maior parte de seus trabalhos havia sido concluída em criar bancos de dados secretos em lugares seguros para quem sabe após muitos séculos o cruel Reich caísse e os herdeiros do legado perdido da humanidade finalmente pudessem trazer à tona histórias, conhecimentos e vidas perdidas de etnias, religiões e povos extintos.
Quem nos defenderá dos que são defendidos por todos? Quem nos defenderá do que não aceita que nos defendamos?
A história estava divina, mas terminou tão rapidamente!