Resenha: Guerra Sem Fim (Por Luiz Felipe Vasques)

Spoilers abaixo.

Clássico da FC Militar, The Forever War (1974) é escrito por um veterano da Guerra do Vietnã (1955 – 1975), um ano antes da Ofensiva do Tet e da retirada das tropas americanas do sudeste asiático, dando fim ao conflito. Por ser a história que é e, imagino, capturar o momento, foi a obra vencedora dos Prêmios Hugo e Nebula, os máximos da FC norte-americana, além do Locus na categoria Melhor Romance do Ano.

A grande sacada de seu autor, Joe Haldeman, foi unir as consequências da dilatação do Tempo quando em velocidades próximas à da luz (o tempo passa bem mais devagar para um viajante nessas velocidades do que “do lado de fora”) com a estranheza dos EUA no início e o fim da Guerra: uma América bem menos otimista e jovial do pós-II GM havia surgido; após toda a contestação, a contracultura beatnik, os assassinatos de Kennedy e Luther King, a Crise do Petróleo, hippies e o Verão de 68, os movimentos pacifista e ambiental, tensões étnicas, etc. etc. etc.

Soldados serviam até doze meses no Vietnã e, sobrevivendo, voltariam para casa. Mas a ideia é: e se eles ficassem todos os vinte anos fora de casa, no Vietnã? Como seria o contraste, ao voltar? Que EUA eles encontrariam? Como seria a sociedade? Perguntas feitas por alguém que teve que lutar para se reajustar à sociedade civil, especialmente após se ferir na guerra, ao servir em meados dos anos 60.

E Haldeman responde isso muito bem. A sociedade que ele imagina, no exótico mundo de 2024, ano do primeiro retorno do protagonista, o soldado William Mandella, é diferente o bastante do de sua partida, nos então distantes anos 90. Haldeman foi bem além do que nós fomos na vida real, com uma ciência astronáutica bem mais desenvolvida que em nosso mundo.

Mas ele reimaginou a sociedade de forma curiosa e amedrontadora, após episódios de fome mundial e um regime de força instaurado via ONU para assegurar que a sociedade não acabasse de descambar, com uma economia girando – e dependendo vitalmente – ao redor da guerra. A sexualidade é mais aberta, mas a seguridade social se torna cada vez mais escassa pela idade, até a inexistência. Cidades são aglomerados de pessoas em vários andares, todos com problemas altíssimos de segurança, sendo prática corriqueira contratar guarda-costas. Empregos são indicados pelo governo, mas há uma prática (ilegal) de subcontratar. Comunidades agrícolas semi-independentes correm à margem das cidades e do sistema, mas têm que enfrentar ataques de bandidos organizados; tudo com uma ligeira aura sugerindo o que vai ser explicitado em obras posteriores, de Mad Max ao cyberpunk.

A única certeza que Mandella tem é a da guerra. Ele se realista após experiências pessoais ruins, ele e uma colega de armas com quem já se relacionava nos tempos do serviço (o “amor livre” era prática na caserna), a cabo Marygay Potter. E a certeza de estarem juntos é também o que os conforta… por um tempo.
Mas nem na guerra a certeza lhe bastará: relíquia do fim do Século XX, ele irá se encontrar isolado culturalmente, entre o idioma que não mais fala e até mesmo sua sexualidade. Se apesar disso ele ainda tem que comandar os seus subordinados… o Exército deve saber o que está fazendo, não? 🙂

Mandella é um personagem curioso. Tem QI na base de 150, o que o candidata aos esquadrões de elite, com mestrado em Física. Ao mesmo tempo, não promove debate ou parece refletir o suficiente sobre o que ocorre. Não que não entenda, pelo contrário: talvez desde o começo perceba que não há nada a fazer em um sistema que depende da guerra para funcionar e, para isso, irá sacrificar gerações não raro com requintes de crueldade e passar um milênio em uma guerra contínua. Ele não busca informações sobre processos decisórios, alternando entre tempo de serviço e no que são breves momentos de fuga. Toda a informação que recebe é para fins práticos para a guerra. Deve ter sido processo similar na Guerra do Vietnã e o inimigo de aspecto mais estranho do que a norma étnica e cultural do soldado americano, assim como cultura e idioma, garantindo, suponho, uma barreira de comunicação perto do intransponível para a maioria. Ele não reflete, ele não julga, ele não condena – ele apenas prossegue.

O livro é o segundo escrito em um mesmo universo, o primeiro havendo sido War Year (1972), baseado nas cartas que enviou para casa, quando estava na guerra. Teve a sequência Forever Free (1999), um relato do ponto de vista da personagem Potter chamado A Separate War (1999) e uma sequência temática, não cronológica, chamada Forever Peace (1997). Há ainda adaptações para quadrinhos e uma para boardgame.

É um clássico instantâneo da FC Militar, como foi dito, sendo obra que merece estar ao lado de Tropas Estelares (1959), de Robert Heinlein, da qual tirou inspiração e de quem recebeu elogios.

Editora Aleph em vários fronts.

No Brasil, A Guerra Sem Fim pode ser encontrado pela editora Aleph, que também publicou a obra acima, investindo ainda na série mais recente A Guerra do Velho (2005, John Scalzi), apresentando ao público brasileiro três marcos do subgênero.

Luiz Felipe Vasques é presidente do CLFC no período 2019-2021. Este e outros artigos e resenhas seus podem ser encontrados no site http://blogdefc.blogspot.com

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para o topo